domingo, 21 de abril de 2013

# PONTO RETA SUPERFÍCIE VOLUME




Pitágoras teria chegado a conclusão de que todas as coisas são números através, inclusive, de uma observação no campo musical: verifica, no monocórdio, que o som produzido varia de acordo com a extensão da corda sonora. Ou seja, descobre que há uma dependência do som em relação à extensão, da música em relação à matemática. (...)
Os pitagóricos adotaram uma representação figurada dos números, que permitia explicitar sua lei de composição. Os primeiros números, representados dessa forma, bastavam para justificar o que há de essencial no universo: o um é o ponto (.) mínimo do corpo, unidade de extensão; o dois determina a linha (...); e o três gera a superfície () . Enquanto o quatro produz o volume.
Os Pré Socráticos (Coleção Os Pensadores) Introdução. SP: Ed. Abril, 1983. =+§

Tomando como ponto de partida o texto acima, é razoável afirmar que:
(a) Não há relação entre música e matemática.
(b) O som independe da extensão da corda.
(c) O ponto “quatro” da fórmula pitagórica jamais poderia ser representado numa folha de papel.
(d) O numero “zero” não existe.
(e) Ponto, reta, superfície e volume são conceitos matemáticos.




PONTO

Pegar uma caipirinha pra ela


Cenário:
Festa. Um esquema badalado com os grã-finos, as peruas e toda a classe média emergente.
Numa roda de amigos, tento convencê-la a tomar uma caipirinha.

Não ta bebendo?

Já bebi. Duas taças de vinho.

Gosta de caipirinha?

Gosto.

Quer uma?

Hmmm, acho que já bebi o suficiente por hoje.

Poxa, é sexta feira. Amanhã você trabalha?

Não.

Pode dormir até tarde?

Posso.

E não vai tomar uma última caipirinha, sexta feira, dez da noite? Bora, aproveita a vida! Ce tá dirigindo?

Não.

De carona?

Sim. Com a Bia.

Então não tem desculpa. Eu vou lá de qualquer jeito pegar uma pra mim. Pego uma pra você também, pode ser?

Olhando por esse lado....

Olha, sempre é bom olhar por esse lado...

Hahaha. Rsrsrsrs. Onomatopéias.

Pouco gelo ou muito gelo?

Muito. Tá calor, né?

Tá derretendo! Por mim eu tava pelado agora!

Hahaha. Rsrsrs de novo.

Brincadeira! Té parece, né? Se bem que

Se bem que, né?

Hahaha. Rsrsrsrs.



RETA

Hoje é o dia mais feliz da minha vida


No meio da multidão, indo pegar as caipirinhas, dou de cara com heidegger. Foi um encontro fulminante. Veio pra cima de mim com braços abertos, cheio de histórias pra contar.

Preciso te contar uma coisa incrível.

Seu sorriso era radiante.

Desculpa, eu

Hoje é o dia mais feliz da minha vida.

A afirmação foi categórica. De fato parecia dopado de alegria.

Posso saber o porque de tanta felicidade?

Pode, claro! Vou te contar tudinho!

E me arrastou prum canto.

É curioso como a vida passa. Você planeja uma viagem, por exemplo. Compra a passagem meses antes. Agenda o hotel. Pela Internet, já fica sabendo quais as maravilhas que vai encontrar. Cria expectativas, tal e coisa. Chega o dia. Você viaja. Chega no lugar maravilhoso. Sobe uma montanha ou faz um mergulho submarino. E, mesmo assim, a vida passa. Você pensa “estou vivendo um momento mágico e maravilhoso”, mas só pra se convencer disso. E não estou falando só das felicidades empacotadas do turismo. Um sujeito está num momento místico, como casando na igreja ou tomando posse como presidente da república; no entanto, só o que passa pela sua cabeça é “que vontade de cagar” ou “até que aquela senhorita, assim vestida de gala, fica traçável”, e outras constatações do tipo. Por mais coberto de simbolismo, o momento nunca vai deixar de ser prosaico. Todos os instantes da vida se equivalem no grau de desimportância; instantes sucedem e precedem outros instantes, até que por fim não reste mais nada. É assim que a vida passa. Ocorre que temos, sim, esclarecimentos brutais e metafísicos, momentos de glória e de redenção. Quantas idéias brilhantes já não surgiram de uma simples cagada? Espero não estar sendo muito escatológico, mas nesses momentos de descoberta e crescimento, vê-se claramente que bela merda é a vida que a massa ignara leva nos escritórios, verdadeiros crematórios de almas. Mas num momento desse, encharcado de simplicidade, é possível reconhecer a beleza da vida. Quando cai a ficha e você diz pra si mesmo “estou apaixonado”, não é emocionante?

Ficar apaixonado é coisa de adolescente.

Hoje descobri que fui traído.

Sério?

Minha ex mulher teve, um par de anos atrás, um caso tórrido com um cara que é meu conhecido.

Que situação.

Isso ainda não é nada.

E mesmo assim está se sentindo bem?

Sim, muito. Na verdade nem ligo pra isso. É um pouco constrangedor, mas não ligo.

Não tem que ligar mesmo.

Eu estava pensando sobre os 4 conceitos geométricos de pitágoras. Sabe? Ponto, reta, superfície e volume? Hoje vi a minha vida dentro de uma formula geométrica. Eu, que era um ser bidimensional, de repente criei volume: me libertei.

O que houve?

Vinha eu andando pela rua quando dou de cara com kierkegaard. Lembra dele? Nos cumprimentamos como dois cavalheiros e perguntei: como vai a família? E ele: ótima. E eu: e o pessoal da faculdade, tem visto? E ele: vi sicrano e beltrano outro dia e etc etc e outras platitudes. Perguntei afinal se estava atualmente escrevendo algo. Estou escrevendo um livro altamente ambicioso. Um projeto hercúleo e extraordinário, disse. É um esquema realmente inspirado em james joyce e guimarães rosa. Um achado estilístico. Nem te conto. Quer dizer, conto sim. Estou me achando um mito, um gênio, um semideus. Cada frase da coisa – imensa, com mais de mil páginas – é um labirinto cheio de neologismos, intertextos e referências. Não estou exagerando ao dizer que reinventei a língua brasileira. Você até poderia chamar a coisa de “um grande sertão urbanizado em cujo sistema nervoso habita o alter ego de ulisses, personagem descriado por james joyce e reinventado no século vinte e três.” Gostaria de ler? Fiquei tão curioso que aceitei o convite. Ele estava com o manuscrito numa pasta e logo sentamos numa cafeteria e pedimos dois expressos. Peguei na mão o petardo experimentalista, acendi um cigarro, abri na primeira página e mergulhei na leitura.

E então?

Ele suspirou, botou a mão no meu ombro e disse filosoficamente:

Já vi dois homens igualmente dotados de discernimento discordarem diametralmente sobre um assunto.

E o texto? Muito ruim? Péssimo, suponho.

O que te faz supor isso?

Sou filha da puta mesmo.

De fato a coisa era ilegível. Uma catedral cheia de firulas, arabescos, palavras pomposas, e tudo sem a menor coerência, sem estrutura narrativa mínima, nada. Como nelson rodrigues disse a respeito do mesmo grande sertão, bíblia dos neologistas, há ali um monumento estilístico, só isso. O cara precisa ser mesmo gênio pra inventar um continente lingüístico, mas fazer uma coisa banal como trocar um pneu, duvido que esses caras façam.

O que te faz supor que guimarães rosa não sabia trocar pneu?

Aposto que não sabia. Duvido. Falo aqui do pneu como metáfora da trivialidade aplicada, da tarefa banal e necessária que qualquer idiota domina. Sabe-se, por exemplo, que numa história deve acontecer alguma coisa. Mas no grande sertão, quase nada acontece. Jagunços vagam de um lado pro outro; há traições e tiroteios; firulas e firulagens; e o espectro de um capeta malvado. Não me leve a mal, reconheço a coisa no plano estético, exclusivamente no plano do estilo, com pitadas de abacaxis filosóficos – pacto com o cão, homossexualidade reprimida, vingança. Mas contar uma história é outra coisa. Quando a coisa opera no plano da digressão e do fluxo de consciência, você tem na teoria um romance psicológico, mas na prática uma punheta intelectual sem tamanho. João guimarães rosa e clarisse lispector são pessoas que falaram muito e disseram pouco, criaram circunlóquios sobre a condição humana na terra, como galinhas recém decepadas, mas todo esse sentimento é transmitido de maneira caótica, deselegante, infantilizada. Se a literatura brasileira for medida só pelas punhetagens de clarices e rosas, a parte realmente boa da história não vai ser contada.

Disse essas coisas pra ele?

Disse, num arroubo de sinceridade, e porque sentia que ele precisava tomar uns trancos. Disse também “você tem que aprender a usuar vírgulas antes de reiventar a linguagem” e outras coisas hediondas. Eu trepidava. Era um delírio esmagar os sonhos que ele vinha acalentando, senti um prazer demoníaco ao demolir sua catedral e mijar em cima do entulho. Era apenas uma opinião, espero que compreenda.

Uma opinião formulada em cima de vinte ou trinta parágrafos, sendo que o calhamaço tem mais de mil páginas.

Você teria a mesma impressão. E sabe por quê? Por que ele tenta desesperadamente te impressionar – ele quer mostrar que sabe as palavras difíceis, que cria metáforas espantosas. Um escritor que escreve pensando na crítica literária é mesmo o pior verme da espécie, o mais canalha, o grande e sórdido estelionatário das pobres das vinte e tantas letras do alfabeto. Enquanto eu falava essas coisas, kierkegaard foi passando por série de sentimentos caudalosos e intensos que quase entornavam na superfície. Primeiro ficou espantado e chocado; sentiu-se agredido, não há dúvida. Eu falava do calhamaço, mas era como se estivesse ofendendo a família, espalhando na vizinhança que a mãe era uma puta alcoólatra. Cada vírgula do que eu dizia era tomada como uma ofensa pessoal e intransferível. Coitado do meu amigo. Admito que me diverti com a desolação dele, que senti calafrios de filhadaputagem ao ser assim tão irresponsável no que dizia a respeito dos grandes escritores brasileiros. Aí ele invocou o mesmo argumento: “Mas você leu tão pouco. É só no final do primeiro terço da história que se abre um novo arco, um novo caleidoscópio, etc”, mas aquilo não era uma história. Disse “mande pro meu email que eu dou uma lida com calma lá em casa”, mas era óbvio que falava por educação e jamais deitaria de novo os olhos em tão pretensiosa bobagem. Sério: uma bobagem. Uma quimera. Algo que nunca deveria ter sido escrito.

Você pode ser mesmo uma pessoa desagradável.

Ele afirmou que eu era realmente um cara de opiniões fortes e concordei: sou mesmo uma pessoa de opiniões inarredáveis. “Você se julga esclarecido a respeito dos temas polêmicos e da produção cultural do mundo moderno?”, ironizou. Sim, respondi, cheio de energia. Sou um cara esclarecido, conheço os clássicos e leio o new york times todo dia. “Incrível.” Ele estava acachapado com a minha arrogância. “Sobre a questão da palestina, você também tem uma opinião formada?” Formada e não abro mão. “Sobre a bíblia?” Claro. E sobre o agrotóxico, o agronegócio e os transgênicos. Aborto, descriminalização e/ou legalização das drogas, eutanásia, clonagem, bioética e biosegurança, pirataria, testes em cobaias humanas e/ou animais, a dívida dos países africanos, a dívida pública dos estados unidos, todo e qualquer tipo de dívida interestadual e governamental, temas delicadíssimos da economia, sujeitos a mil variáveis, taxa de câmbio, deflação, mercados emergentes, tenho opinião sobre tudo isso e também tenho opinião formada e esclarecida sobre os direitos e os deveres do cidadão contemporâneo, a reciclagem, lixo tóxico, trabalho escravo, aquecimento global, redução da maioridade penal, lei e/ou campanha do desarmamento, “E sobre o verso “eu prefiro ser uma metamorfose ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo” do raul seixas, você tem opinião?” Perguntar se eu tenho opinião sobre o raul seixas é sacanagem, porque tenho teses e teorias sobre as letras, as músicas, as poesias, as referências, as tiradas prontas e os plágios, os muitos plágios que fez, porque foram vários, “E sobre o plágio, você tem uma opinião formada?” Pra mim quem faz plágio tem que ser metralhado. “Isso é uma opinião ou uma “tirada pronta”?” É uma opinião, te garanto isso. “Desculpe se pareço precipitado, mas assim do jeito que você fala, tão certo de tudo, supõe-se que tenha mesmo um talento incrível.” É você que está dizendo. Se sou assertivo em minhas opiniões, azar. Precipitado, irresponsável? Talvez. É uma maneira de ver a coisa. Mas acredito numa espécie de honestidade intelectual no debate público, pro bem da comunidade, como ensinaram os filósofos. Por isso estou sendo sincero. “Do jeito que fala, poderia ser um romancista prolífico ou cronista diário de algum prestigiado veículo, taí, você devia ser editorialista de um jornal influente e respeitado como a folha de são paulo. Se meia dúzia de pessoas no corpo editorial concordar que você é um cara de “opiniões contundentes”, ainda que não sejam a opinião do veículo, até porque você também tem opinião sobre isso, é seu o emprego. O articulista mais quente, mais incendiário, mais lido do momento. Daqui cem anos vão bater punheta sobre suas crônicas e observações inteligentes, o que me diz disso?” E eu só falei assim, desse jeito: pega na minha e balança. “Perdão?” Vê se eu tenho cara de palhaço. Eu ia muito querer trabalhar numa bosta de lugar desses. Na minha opinião, o camarada tem que trabalhar o mínimo possível. Eu mesmo sou um picareta e um charlatão no trabalho. Chego tarde e saio cedo. Tem serviço que finjo que nem vejo. Cada um com suas prioridades. “E quais seriam as suas, ó Supremo?” Também escrevo minhas coisinhas. Ele ficou radiante. Então havia as minhas “coisinhas”, passíveis de demolição, como as dele, só que eu era arrogante e panfletário. Todo o mal entendido poderia ter sido evitado, mas - “Do jeito que fala, parece que é mesmo um gênio, e é meu dever como humanista fazer com que ao menos uma opinião sua fique pra posteridade, por favor, te peço como um favor pessoal, depois de toda a indelicadeza, mas nem estou levando em conta isso, só quero te fazer uma proposta, pode ser?” Manda. “Depois que james joyce publicou ulisses, o mundo virou outro, concorda?” Concordo. É razoável dizer isso, pelo menos no plano simbólico. “Ótimo. Madame bovary deu processo, não foi?” Cabeludíssimo. “O manifesto comunista. A origem das espécies. O anticristo. Esses livros que costumam gravitar nas coleções de “mais influentes de todos os tempos.” Há coisas escritas que realmente mudam paradigmas, acordam as pessoas pra vida. E tenho certeza que com galhardia e elegância semântica você não faria feio no panteão dos grandes, poderia chegar no olimpo, dar um pedala-robinho no guimarães e na clarice, e mostrar com quanto sêmen e sangue de poeta revoltado se faz uma teogonia. Nesse exato momento você está na iminência da redenção ou de provar a si mesmo e ao mundo inteiro que é uma fraude.” Não sei se temos a mesma opinião a respeito das qualidades exprobratórias relacionadas a palavra “fraude.” “Fraude é mesmo uma palavra forte, e não usei por acaso. Ou você me prova que é gênio ou vou ter certeza que é um ser humano que diz e não faz, se gaba de ser pintudo mas na verdade é um zero-a-zero, uma grande e bela fraude. Um mascarado.” Era um momento tenso. Eu poderia nesse instante soltar uma gargalhada e dizer: hahaha, que engraçado isso, foi uma esquete realmente inspirada, dava uma cena de sitcom fácil, por um segundo pareceu que alguém tava levando a coisa pro lado pessoal. Haha, hilário isso. Adorei seu livro, cara. Realmente corajoso. Desculpe não poder dar uma opinião mais profunda, mas sempre tive certeza que você é um escritor que está indo na direção certa, persista e nunca ache que os sonhos são grandes demais pra caber no mundo. Na verdade eu sou uma barata pra entender isso. Só o umberto eco, o harold bloom e mais dois ou três caras no mundo poderiam querer começar a desconfiar o que está rolando nesse caleidoscópio. Se eu terminasse com “caleidoscópio” fatalmente ele me convidaria pra terminar a noite bebendo chope e celebrando a amizade, a antiga turma e os mestres do cinema e da literatura. Era o que eu devia ter feito. Ou não. As conseqüências ainda não se esclareceram. A bola de neve tá rolando nesse momento e ficando imensa. A coisa ainda vai acabar em tiro. Mesmo assim estou feliz como um pinto no lixo.

Pensei num modo de dispensá-lo e ir pegar as caipirinhas, mas ele me agarrou o braço.

O que houve depois, você não acredita.

Espero que esteja brincando.

Sim, tiros. A queima-roupa. Um crime passional.

Nesse momento, ela passou com um grupo de amigas e disse na correria “to indo lá ali do outro lado, depois leva a caipirinha”, sorrindo, e eu: claro, claro, daqui a pouco chego lá fora com os drinks,

Kierkegaard é mesmo um sujeito sério. A brincadeira não foi desfeita. O clima continuou tenso. Acendi um cigarro e soltei a fumaça. Ele olhava pra mim como se pra hitler expelindo maldade. “Vamos fazer o seguinte. Você vai escrever um texto magnético e amanhã o brasil vai acordar hipnotizado. Na primeira página da folha. Milhões e milhões de jornais vendidos. Ministros e presidentes lendo. O que me diz?” Como vai conseguir isso? “Se for uma opinião realmente fundamental, tenho os meus meios. Conheço pessoas. Posso convencê-los.” Como? “Uma vez por semana eles abrem um quadrado pra um iniciante. Se for bom o bastante, claro. Fazer rodar o espaço. Colaboração voluntária, está virando tradição nos jornais isso. Um quadrado de opinião pra quem tem algo novo e imprescindível que precisa ser comunicado.” No alto da página? “Não no alto, mas na primeira. Junto com os principais articulistas. Se for bombástico, vai ser lido. Não se preocupe. É que me parece que você tem opiniões bombásticas que precisam ser explodidas.” Uma ou duas, de fato. “É possível, te garanto. Uns fulanos que eu conheço já publicaram. Conheci a editora e creio que ela faria isso se eu pedisse com jeito e o material fosse mesmo incrível. Todo editor é louco por um texto desse tipo. Agora, nesse dia, o seu texto tem que despertar o louvor e a ira da inteligência brasileira. Menos que isso, vou pra sempre te achar um verme ridículo.”

Verme ridículo?

Espera. Nessa altura o papo estava tenso, com impropérios desse tipo. “Ocorre, senhor incendiário, que o seu texto tem que ser uma opinião inédita. Tem várias desse tipo, suponho.” Tenho várias. “Inédita, inédita mesmo, sem hipotexto.” Sem nenhum hipotexto, nenhuma referência. Tenho uma inédita que é tão inédita que o mundo há de ficar boquiaberto. “Isso! Incrível.” Ele queria me ver linchado em público, mas eu não ligava. Kierkegaard parecia ridículo, cheio de melindres e não-me-toques. Não posso fazer um comentário prosaico? Virou café-com-leite, agora? Achei o seu livro ruim, grandes bostas. Continua existindo a lei da gravidade. Todo escritor tem que saber ouvir críticas. “Deve ser mortificante ter tantas opiniões inéditas o tempo todo.” Vou dormir pensando nelas. É um processo orgânico e contínuo. Um vício: você começa a ter opinião sobre tudo. “Na sua opinião, é capaz de me mandar um texto hoje até às seis horas que seja tudo-isso-que-você-está-dizendo? Digo, uma opinião que há de estarrecer realmente nossa ignorância? Que nos faça ver uma verdade?” Faço, se você está pedindo. “Espero que compreenda os termos do acordo. Quantos e-mails e comentários seriam mandados à redação do jornal? Por baixo?” Ia ter mais de dez mil pessoas muito incomodadas. “Hmmmm, um petardo. Poderia citar alguns jornalistas que iam reverberar o assunto?” Se a informação realmente circulasse, o chomsky ia ficar sabendo. Ia escrever a respeito, sem dúvida. O jhon stuart ia comentar no daily show às gargalhadas. Trending topics por três dias. A mídia alternativa, se é que me entende. “Estou entendendo, claro.” Mas não só a mídia alternativa. O nytimes ia falar a respeito. O el país, a al jazira, dependendo claro de alguns fatores políticos. “Uma mensagem intercontinental. E ecumênica, me parece.” Sim, ecumênica, que fala ao coração de todos os povos. E eu dando trela pro doido. “E no brasil, como seria a repercussão do míssil?” Ah, o ministro da educação ia soltar uma nota me acusando. Na tv iam me pichar de louco ou de excêntrico. “Hmmm, do jeito que diz parece que a coisa vai ser censurada.” Acho que não, porque é aquele tipo de verdade que o bom senso diz que deve ser dita, mesmo que doa aos moralistas. Me parece, pelo menos. “Parece? Parecia que estava claro antes.” Foi aí que me assolou uma pequena crise de labirintite. “Conte mais, eu te peço.” Sabe quando há uma roda de respeitáveis senhoras e alguém diz pau duro ou xoxota e todas riem dizendo “nossa, nossa, ele disse xoxota”, sabe a irrisão simplória de expelir um palavrão num ambiente inadequado?, então, seria algo assim, uma piada suja, um segredo abjeto da civilização que está há muitos milênios soterrado e precisa ser resgatado. “Dito assim parece tão místico! Uma piada suja e mística, eis aí algo que gostaria de ler”, uma piada mística e suja, eu diria. “Amigo, olhando assim com essa luz, você tão heróico fumando esse cigarro e dizendo isso, dá mesmo a sensação de ver o profeta na iminência de talhar na pedra os dez mandamentos.” Jamais escreveria os dez mandamentos. Muito moralista pro meu gosto. “Conhece aquele mandamento que diz “não cobiçar a mulher do próximo”?” Conheço. “Qual sua opinião sobre ele?” Por que pergunta isso? “Por nada. Mas também sei de um segredo a seu respeito.” Qual? Não que eu ligue,

Se não liga por que ficou dando trela pro doido?


Melhor um trauma do que nada

Às vezes penso sobre a minha infância,

Heidegger, há alguém me esperando e

Há certas teorias da biologia que dizem que não sou aquele menino. Que de tantos em tantos anos todas as minhas células viram outras células. Hoje é um daqueles dias em que vejo aquela criança no ponto de partida e aquele velho no ponto de chegada, quando a superfície descobre o volume. Estou emocionado, eu sei. Me lembrando de coisas remotas. Não me olhe assim. Daqui cinco minutos você leva a caipirinha pra ela, quero te contar uma coisa muito pessoal da minha infância,

Festa não é lugar de fazer psicanálise.

Eu lembro, vejo claramente agora. Não duvide quando dizem por aí que a vida é perigosa como um trem desgovernado. A constatação acachapante é que essas lembranças são tão violentas, tão traumáticas. Mas, olha essa: se for minha única lembrança, ótimo. Melhor um trauma do que nada. Naquele dia distante no tempo fui severamente espancado. Uma gangue me batendo. Tomei soco na cara. Doeu muito. Eu era muito novo. Também vi uma pessoa morta embaixo do tronco de uma cachoeira. Fiquei tão impressionado que não contei a ninguém. Ainda muito pequeno, lembro de estar andando e ter alguém preso num buraco. A pessoa gritava que estava sem ar e eu saía correndo. Em outra ocasião vi um espancamento, aliás lembro de vários. Meu pai me leva ao estádio – eu devia ter o que?, quatro, cinco anos – pra ver um jogo de futebol e há na torcida um espancamento. Bico na costela, perna quebrada, fratura exposta, não estou inventando, é verdade essa merda, nesse dia chorei de medo e era apavorante porque eu também podia cair num buraco, podia virar um corpo em decomposição embaixo de um tronco de cachoeira. É assim que a banda toca, o sofrimento é a viga mestra e o parâmetro e o critério. E em termos freudianos os traumas infantis são mesmo primários no desenvolvimento psíquico. De modo que lembro só de coisas escabrosas e assustadoras, pelo menos é a maioria esmagadora das imagens que me assolam como visões nesse dia tão encharcado de simbolismo. Me vejo também sendo um monstro. Devia ter sei ou sete anos, e fui fustigado pelos coleguinhas a falar “seu preto, seu preto” pra um negro que era filho da cozinheira da escola. Abomino o racismo, mas lembro com crueldade humilhante o dia em que fui racista com o próximo. Por que lembro disso? Não haveria coisas menos desagradáveis? O dia em que fui corno, humilhado, em que brochei, em que menti, em que me caguei inteiro, lembro dessas bostas com uma nitidez hedionda. Por que, me responda? E as milhões de horas em que fui um cidadão educado, razoável, um pai de família amoroso e em sintonia com os interesses da comunidade? Não conta isso? “Memória seletiva”, de fato. Esses psicólogos e suas teorias. Pára de olhar pra mim como se eu fosse maluco. Essas coisas também te dizem respeito. Mas eu tinha uma coisa pra escrever, de fato.

O que era? Conta logo.

Bem sabemos que o mundo contemporâneo já está devidamente traumatizado e não há paulada que choque esse cachorro velho em que nos tornamos. Demolir um ídolo mitificado como lula ou chico buarque, tem um monte de idiota fazendo e ninguém liga pra isso. Escrever um conto erótico, ó que revolucionário, ele falou xoxota em público. Insultar alguma minoria, falar barbaridades contra judeus, negros, crianças, velhos, grávidas, já tinha comediante fuleiro fazendo. Nada do que eu dissesse poderia chocar o público. Ou talvez um achado. Uma catarse. Um choque um pouco menos óbvio. Combinamos o numero de toques. Fui pra casa e às seis em ponto mandei o email. Compreenda que kierkegaard queria me humilhar em público. Que meu texto fosse enxovalhado ou olimpicamente ignorado. Como o negócio era vale-tudo, mandei algo que poderia deixá-lo intrigado. Eis o conteúdo:

Fazendo cocô na boca dos críticos literários

Fazendo cocô na boca dos críticos literários Fazendo cocô na boca dos críticos literários
Fazendo cocô na boca dos críticos literários Fazendo cocô na boca dos críticos literários
Fazendo cocô na boca dos críticos literários Fazendo cocô na boca dos críticos literários
Fazendo cocô na boca dos críticos literários Fazendo cocô na boca dos críticos literários
Fazendo cocô na boca dos críticos literários Fazendo cocô na boca dos críticos literários
Fazendo cocô na boca dos críticos literários Fazendo cocô na boca dos críticos literários
Fazendo cocô na boca dos críticos literários Fazendo cocô na boca dos críticos literários
Fazendo cocô na boca dos críticos literários Fazendo cocô na boca dos críticos literários
Fazendo cocô na boca dos críticos literários Fazendo cocô na boca dos críticos literários
Fazendo cocô na boca dos críticos literários Fazendo cocô na boca dos críticos literários

Por que uma atitude tão baixa?, é o que me pergunto. Sabe, outro dia fui a uma reunião onde havia várias pessoas queridas querendo bem às outras, uma linda família cheia de amigos. As pessoas diziam umas às outras, muito educadas, que querida sua família, que querida a sua filha, um querido seu esposo, quero muito bem à sua irmã, querida!, que bom que veio à festa!, e no final todos cantaram e desejaram parabéns e felicidades e muitos anos de vida nessa data tão querida. Ninguém insultava, agredia, cuspia no chão ou falava de cocô. Depois de comer os pasteizinhos de camarão, os senhores iam educadamente peidar no quintal, onde conversavam sobre a última rodada do campeonato brasileiro. Tanto querer-bem, cadê ele nessas horas, essas histórias não são contadas?

Quem ia se interessar por uma história dessas?

E a verdade é que acho sim um belo texto e te digo os motivos. Sabe quando dizem que 2001 não é um filme, mas uma “experiência religiosa?” Pois bem, isso aí que vai supracitado não é um texto, mas uma catarse, uma violência perpetrada contra o mais vil dos seres. Críticos literários são artistas frustrados e não os respeito por isso, eunucos no harém, desqualificados que gozam com o pau dos outros. E como esses babacas têm teorias pra tudo, citações e referências pra explicar qualquer rabisco de porta de banheiro, quero que digam agora o que acham disso, mas há um problema, estão com a boca cheio de cocô, foi um ato terrorista e acabou o assunto, qualquer coisa que escrevessem sobre como “Um iconoclasta pode muito bem ser sujeito extremamente desagradável” ou “Foi-se o tempo em que a vanguarda ainda fazia versos” ou “Um texto abjeto, preconceituoso, mal educado, ridículo, patético”, ou “A coisa mais inútil que já li na vida”, não ia fazer diferença, porque eu era um homem bomba que já tinha se explodido e lembrem-se que é falta de educação falar com a boca cheia, ainda mais se cheia do que estamos falando. Uma covardia, sim, mas uma covardia coberta de glória, e te garanto que não é a opinião de um sujeito único. Quanta redenção nesse ato! E o pior era o verbo no gerúndio, imaginava as dores lancinantes sentidas pelos professores de concurso que dizem “não usem verbo no gerúndio, é deselegante e coisa de atendente de telemarketing que vai estar transferindo o numero do seu cadastro” porque – e esse esclarecimento estou tendo agora – estou amando o gerúndio e tudo o que está acontecendo, se você está usando e se sentindo bem com isso, não ligue pra o que os gramatiqueiros estão dizendo, continue usando e cagando e andando. No plano do conteúdo, cheguei aos limites da escatologia ao sugerir que esses senhores e senhoras tão dignos, esses intelectuais tão limpinhos, professores universitários, resenhistas de jornal e revista, blogueiros conceituados, pudessem ser conspurcados dessa forma. Poderia haver variações como “cagando na boca dos críticos” ou “escorregando o tolete na boca dos críticos”, mas “cocô” era uma palavra infantilizada ou no mínimo pouco masculinizada – homem fala bosta, merda, barro e outras coisas – e eu queria encarnar uma entidade pura que falasse pelos seres mais antigos, mais remotos, os oprimidos nas catacumbas do planeta, eu queria falar a língua dos demônios. Tem muita gente incensada por esses cornos e é hora de dar um basta nisso. Por isso também evitei o vago “fazendo cocô na boca da crítica literária” como se a crítica fosse algo etéreo, uma ferramenta idealizada da qual se servem os seres humanos, não, eu queria ofender e insultar cada um deles. Foi uma celebração da violência e um trauma deliberado. Não subestime o trauma. Pense num sujeito como paulo lins, que cresceu vendo barbaridades na cidade de deus. Assaltos, linchamentos, pessoas queimadas, fuziladas, traições, consumo gargantuesco de drogas, baixarias, surubas e orgias. Diga o que quiser de uma favela brasileira, mas lá existe um laboratório de histórias e pessoas com opiniões extravagantes. Lá sim as coisas acontecem. Ele conta tudo com os detalhes mais sórdidos e a crítica literária se sai com a opinião de que paulo lins é um cara que sabe contar histórias. Isso é óbvio. Tudo graças à exclusão social e aos traumas malditos. Aí você pensa nos pobres escritores suecos e dinamarqueses, com seus dilemas filosóficos. Você está numa roda de amigos e de repente a pauta é “assalto.” “Fui assaltado assim assim assado” diz um. “Já eu fui refém por três horas” diz o outro. Um terceiro sai com a bomba: “Outro dia andando na rua vi uma quadrilha explodir um caixa eletrônico.” Também quero contar minha história, senão fico com cara de paisagem. Também fui assaltado. Estive envolvido num grave acidente de carro. Acho que um escritor tem que sair pro mundo e quebrar a perna antes de ficar de mimimi esperando os louros da crítica literária. Imagina se o paulo lins revolve fazer faculdade de “letras” e depois virar um acadêmico que pesquisa “leituras e releituras do pós modernismo tropicalizado”, imagina isso. “Se escrevem mais livros sobre outros livros do que sobre qualquer outro assunto.” Mas a coisa toda foi também um ato de redenção porque um crítico tinha sido estúpido comigo.

Claro.


Enquanto o incêndio avança no arranha céu

Me arrependi de ter entrado naquele circulo grotesco de vaidade intelectual. Também tive calafrios de curiosidade a respeito do que pensam dos meus escritos, fui assolado por comichões de narcisismo e necessidade de ser incensado. Lembra do boris? Pode-se dizer que ele é um crítico literário. Escreve pra um veículo, e essas merdas. Um tipo ridículo. Já passou, mas durante um longo tempo o achei um canalha e um desonesto. Caí na bobagem de dar pra ele ler o enquanto o incêndio avança no arranha céu, lembra?

Vagamente.

Considero a frase um achado poético. Toda a novela se passa durante os breves minutos entre as duas explosões nos ataques de onze de setembro. O mundo ainda não compreendera muito bem o que houvera, e o segundo boing já se aproximava. Trauma. Impacto. Crises de ansiedade. Tempos verbais que vão e voltam, brincadeiras e inferências com os pretéritos, os futuros alternativos, as possibilidades engendradas pelo terrorismo contemporâneo. Tudo isso expliquei rapidamente a boris numa festa na casa de certo filosofo existencialista. Ele disse que teria prazer em ler, mas não o fez. Desonesto, desonesto, mil vezes. O pior foi sua atitude pedante e preconceituosa. Algumas semanas depois, na casa do mesmo senhor ilustre, perguntei, salivando: leu o livro? “Li”, disse displicente. E então? Por que me prestei a isso? Me arrependo amargamente. Estou me tornando um ser anti social. Por favor, me ajude. Escute com atenção, te peço isso. “Inspirado em ulisses, não?”, ele disse. Não. Nem um pouco! “A história se desenrolar num curto período, a dilatação do tempo...” E foi o james joyce que inventou a dilatação do tempo? Está patenteada no nome dele? Nunca leu, por exemplo, as mil e uma noites? De imediato percebi que queria me pregar um rótulo na testa. “Uma coisa meio bukowksy, não?” Bukowsky? Na boa, o personagem principal é um abstêmio que não tolera a promiscuidade. Faz uma ou duas assertivas mais incisivas sobre a existência, mas estamos de acordo quando digo que bukowsy não foi o primeiro a descobrir que “a vida é dura”, constatação aliás bastante arquetípica na gosma do inconsciente coletivo. “E essa coisa freudiana, você não acha ultrapassada?” Que coisa? Freud falou sobre tantas coisas! Falou principalmente sobre as coisas das pessoas. É impressão minha ou você quer subestimar meu livro e o meu pau junto? Não disse exatamente isso. Fiquei exaltado. Disse: Quando vai a uma reunião social e se apresenta como um crítico literário não sente golfadas de asco por si mesmo?

Por que seria a opinião de boris sobre seu livro menos razoável do que a sua sobre o livro de kierkegaard?

Por que? Eu te digo porque! E digo esfregando a sua cara!

Foi aí que tirou um livro do bolso e começou a me estapear com ele, como se brandisse a constituição brasileira diante de um ditador maldito. Era lavoura arcaica.

Fui ficando com raiva do boris e disse: me conte sobre seu trabalho. Deve ser excitante ir ao google todo dia regurgitar a opinião dos outros. “Na crítica literária, a gente acaba convivendo com os escritores. Em seminários, colóquios, palestras, lançamentos, entrevistas. Você percebe que há muitos escritores melindrosos.” E você toma café com eles? “Ocasionalmente.” E vai a reuniões onde são servidos chás e biscoitos e lêem-se trechos de obras? “Pode-se dizer que há eventos desse tipo.” E vamos supor que um escritor derrame um pouco de chá no colarinho, você limpá-lo-ia e diria: “sou do tempo em que se usava espartilho e mesóclise?”, faria isso? “Não considero honesta a ilação de que seja uma atividade antiquada.” Honesto? Vamos falar então honestamente: você leu o meu livro? “Li trechos.” Estava ocupado lendo outra coisa, suponho. “Vão lançar uma nova edição do lavoura arcaica e tenho que escrever pra uma revista um quadradinho.” Na minha opinião não há coisa mais chique que escrever quadradinho. “É realmente um livro de fôlego, estou na verdade relendo.” E no quadradinho há frases como um relato fascinante ou um retrato vigoroso ou uma viagem literária? “Acaba que ficamos restritos a algumas variações desse tipo. Há maneiras não convencionais de fazer crítica literária, mas a maioria dos editores não tolera experimentalismos.” Acho tudo isso tão irônico. Textos caretíssimos sobre livros malucos e descontínuos. Acho tão engraçado. Mas antes fosse maluco ou descontinuo. Fui pra casa e no caminho passei numa livraria vinte e quatro horas e comprei isso. Li de uma sentada, e o negócio é tão ruim que fui ficando com febre, dor de barriga, suando frio, tendo crises e ataques de náusea e labirintite. Fique sabendo que esse livro se passa “sob a égide do tempo.” E como faz isso? Escrevendo “tempo tempo tempo” no meio de frases abstrusas e pseudo filosóficas pessimamente redigidas. Veja esse achado monstruoso e desconexo: “...entre as folhas e os galhos, se derramando às vezes na sombra calma através de um facho poroso de luz divina que reverberava intensamente naqueles rostos úmidos...”(pg. 29). Eis aí um sujeito que negligencia os acontecimentos em prol do espetáculo, eis aí um estilo marmóreo. A frase mais engraçada é esta: “e tudo isso ressurgirá em Ti num corpo adolescente do mesmo milagre que as penas lisas e sedosas dos pássaros depois da muda e a brotação das folhas novas e cintilantes das árvores na primavera...” (pg. 105). Ridículo e, pior, previsível. Não é surpresa que as penas sejam “lisas e sedosas” ou as folhas “novas e cintilantes.” Por favor, me explique esses adjetivos: “saliva escusa” (pg. 110), “pó corrupto” (pg. 105), “urtigas auditivas” (pg. 92), “vinho lento” (pg. 190) “ímpeto ruivo” (pg. 75), “mãos precárias” (pg. 44), “sexo roxo e obscuro” (pg. 11), e o impagável pleonasmo “claridade luminosa” (pg. 27). E olha isso aqui: “meus olhos depois viram a maçaneta.” (pg. 10). Eu e você somos sujeitos simplórios que escreveriam simplesmente “vi a maçaneta”, mas pra raduam nassar a coisa acontece em outro nível. A coisa é infestada de “pomos”, “caroços”, “botões” e “velas exasperadas carpindo óleos sacros.” A decoração da catedral é de fato lindíssima, pena que é tudo cenográfico, tudo de isopor. O personagem é um retardado que fica olhando a parede enquanto lá fora caem as folhas da primavera. Sugestão de incesto. Culpa. Alguém cheira calcinhas de um cesto de roupa suja. E dá-lhe preposições gratuitas. Há uma dança que é assim descrita: “...desenvolvendo com destreza gestos curvos entre as frutas e as flores dos cestos.” Pelo que entendi, ela estava dançando dentro dos cestos, não? Ou sou tão burro assim pra entender isso? Faço esses comentários porque sou ressentido e rancoroso, admito, mas não há uma migalha de sentido no que digo? Não te incomoda ver um imbecil ser chamado de gênio na sua frente? São interessantes os comentários do excelentíssimo senhor alceu amoroso lima: “Drama tenebroso, em estilo incisivo, nunca palavroso ou decorativo, da eterna luta entre a liberdade e a tradição, sob a égide do tempo.” Veja bem, “drama tenebroso.” Viu isso? “Em estilo incisivo, nunca palavroso ou decorativo.” Gostaria de informá-lo que esse senhor considera que esse livro NUNCA é palavroso e decorativo, NUNCA, ENTENDEU ISSO? É bom que ele esclareça esse fato. Estava começando a desconfiar do contrário, mas fique em paz, meu amigo: recoste-se na poltrona, relaxe o esfíncter e desfrute as profundas possibilidades de ler um livro que nunca é palavroso ou decorativo, não, jamais isso, mas um livro que se passa “sob a égide do tempo.” Nós somos seres extraterrenos feitos de vácuo que se passam “sob a égide dos neutrinos de anti matéria.” Já o livro de raduan nassar se passa, ao contrário de tudo no universo, “sob a égide do tempo.” E não duvide disso, pois ele escreve “tempo tempo tempo” no meio das digressões, eis a prova de que o tempo passa mesmo, pro nosso espanto. Isso só tem um nome: crime. Sabe quando um sujeito vai vender um carro roubado na bolívia e suborna alguém no processo? É a mesma coisa. A autoridade que diz “bota aí um chassi adulterado” em nada difere do crítico literário que diz “esse livro se passa “sob a égide do tempo.”” Deixa passar o contrabando. Como noventa por cento da população é analfabeta, e um crítico garantiu que a experiência metafísica se passa “sob a égide do tempo”, que chovam as resenhas elogiosas, os prêmios, as bolsas, as bajulações inerentes ao oficio. Raduan nassar e alceu amoroso lima cometeram um crime público e escarneceram da sociedade, mas ninguém liga pra isso. Estão formados os clubinhos. Li depois o quadradinho de boris. E fiquei ainda mais deprimido ao ver que a coisa passa longe conteúdo, é só publicidade pra editora. Falando da capa, do projeto gráfico, dessas merdas. Que mercado mesquinho, é o que digo. Que sacanagem com os outros, que falta de respeito com a inteligência alheia,


Não precisa falar me esfregando na fuça o seu livro.


Toma, agora é seu - disse, me entregando. Fiquei dias e dias revoltado com boris. Encontrei-o ontem, e voaram farpas.




SUPERFÍCIE

Foda-se você e o seu livro junto


Kierkegaard me ligou dois minutos depois de receber o email. “Você se acha muito engraçado, não é?” Qual o problema? Forte demais pra ser publicado? “Você deve se olhar no espelho e pensar: eis aí um cara engraçado.” Pra ser honesto, achei hilário. “Achou, é?” Duchamp bota um mictório num museu e todos dizem: gênio. Andy Warol tira foto de uma lata de sopa e a crítica é unânime: gênio. Por que seria meu ato menos revolucionário que o deles? Não tem todos os elementos de um achado irreverente e traumático? Não é tal e qual uma privada em local público? Um editor verdadeiramente visionário não hesitaria em publicar. Mas você e seus amigos são cheios de responsabilidades, cheios de rabo-preso, vocês são o atraso do mundo. “Estou chocado com a sua sinceridade. Sou mesmo o atraso do mundo.” Kierkegaard, desculpe todo o mal entendido. Não quis insultá-lo. Quer dizer, um pouco. “Gostaria de convidá-lo pra jantar, é possível?” Bem, eu – “Depois de tanta indelicadeza de ambas as partes, por favor aceite o convite e venha jantar comigo.” Sabia que era uma armadilha, mas acabei concordando.

Vai demorar essa história?

Fui ao encontro de kierkegaard no restaurante combinado. Lá estavam ele e boris tomando vinho. Que coincidência vocês dois aqui. “Estava flanando na internet e encontrei com boris”, disse ele. “Comentei casualmente sobre sua pessoa. Ele disse que leu o seu livro.” Não diria que “leu” é o verbo exato. Mais passou o olho. “De fato. Mas tem uma coisa que você talvez não saiba.” O que é? “Sente-se. Quer uma taça de vinho?” Quero. “Quer conversar sobre o que?” Sobre qualquer assunto. Fui convidado. Boris disse: “Então vamos entretê-lo com um assunto intrigante. O plágio. Creio que mais cedo você fez uma declaração incisiva sobre o assunto.” Kierkegaard: “Ele disse que quem faz plágio tem que ser fuzilado.” “É bem o tipo de coisa irresponsável que ele diria.” Ótimo. Vim aqui pra ser chamado de irresponsável, é isso? Kierkegaard: “Você pode ser irresponsável a vontade, mas existem conseqüências, saiba disso.” Está me gravando, agora? Se ofender alguma minoria vou ser tachado de nazista homofóbico, é isso? Boris: “Não estamos gravando nada.” Mas eu não acreditava nele. O garçom encheu a taça de vinho até a borda. Virei tudo de uma golada. Boris: “Diga honestamente, acha mesmo que quem faz plágio tem que ser fuzilado?” Acho. É essa a minha sina, tenho opiniões muito contundentes sobre as coisas. Kierkegaard: “Pense bem no que está dizendo. Os milhões de alunos brasileiros que copiam redações uns dos outros. Os estudantes que transcrevem ensaios e resumos.” Toda essa corja tem que ser fuzilada. Só assim se faz um brasil inteligente. Mas minha opinião é irrelevante, não se preocupe por causa disso, uma lei assim jamais seria aprovada. “Supondo que você fosse um deputado, e essa lei por alguma excentricidade da mesa estivesse em pauta, votaria pela aprovação do fuzilamento?” Votaria, nesse mais hipotético dos mundos. “Uma coisa em que concordamos a respeito dos livros é que são cheios de mundos hipotéticos.” Caros, vamos falar francamente. Eu falei mal do livro de kierkegaard e boris falou mal do meu livro. Kierkegaard: “Heidegger, por que não me deu o seu livro pra ler também, ao invés daquela asneira?” Você não entenderia. “O que você escreve é inteligente demais pra mim, é isso?” No fundo é isso, mas não se ofenda. Podemos ainda assim jantar como bons amigos, tanta gente faz isso. Boris: “Você era mais educado na época da faculdade. De onde veio toda essa rebeldia aos vinte e tantos?” Sempre fui assim, vocês que nunca repararam. (Mas pra você eu confesso: estou cada vez pior, me tornando um velho chato. Fico por aí incomodando os outros. Por que faço isso?) Acendi um cigarro. Virei outra taça de vinho. Kierkegaard: “Me conte de onde veio a idéia dessa frase tão grandiloqüente que é “Enquanto o fogo avança no arranha céu.”” Linda, não é mesmo? Essa frase ficou anos na minha cabeça. Ouvi quando tinha vinte anos, no dia onze de setembro. Não sei se alguém disse na rua. Se foi deus me soprando um verso. Se nasceu de mim a semente. “Já estou lacrimejando. Continue.” A semente de um livro. Kierkegaard, não me olhe dessa forma. Ambos temos paixão pela coisa, mas cada um entra por um buraco diferente. “Continue assim escatológico. Falar de ânus é tão intrigante.” A beleza da frase é que a palavra “enquanto” no início torna todo o sentido descontínuo. A história se passa em poucos minutos. Há fluxos de pensamento. Cenas que se repetem. E esse tipo de coisa. “Me parece inédito.” É só mais um livro. Mas é pelo menos sobre os seres humanos, e não as penas “lisas e sedosas”, não folhas “novas e cintilantes”, não os “circunlóquios”, não os “arabescos.” “Você não tolera arabescos.” Não tolero. O seu livro é cheio de arabescos. Os quadradinhos do boris são cheios de arabescos. Boris: “Por favor, beba mais. Você não tem nenhum respeito pelo que fazemos, não nego que seja incômodo.” Já estou bêbado, desculpe. Kierkegaard: “Solte aí o seu lirismo. Me fale sobre a beleza da frase.” Cada frase é como um ser humano. “Enquanto o fogo avança no arranha céu” é um indivíduo de vinte anos, vendo o ataque às torres. Ele está trepando. “O tempo todo trepando?” O tempo todo. Um dos capítulos se chama inclusive “tenho ereções o tempo inteiro.” “Me parece um livro arrojado, visualizo um pau duro.” Quase isso. A metáfora mais exata seria um boing: um boing desgovernado. “O desgoverno de um avião na iminência do choque. É isso?” Dito assim parece banal, mas é isso. “Tem orgulho do seu livro?” Não diria orgulho. Mas saiu de mim, não nego. “Se algum crítico escrevesse em algum lugar que você escreveu um livro arrojado, não seria uma mentira, seria?” Não, seria um belo elogio. “E se dissessem que é de “tirar o fôlego”, como falam sobre as confusões que acontecem na sessão da tarde?” A expressão foi degenerada, mas é essa a idéia. Nessa hora kierkegaard começou a gargalhar e constranger os outros – eu já empestava tudo com o cigarro. Uma risada alta e deselegante, cheia de sinceridade. “Hahahahahahahaha, eu te adoro! Você é uma piada! Povo brasileiro, ele escreveu um livro de “tirar o fôlego!” Meu deus! Que adrenalina! Que aventura, meu amiguinho!” Boris olhava tudo meio entediado, mas tinha um segredo sinistro pra contar, eu sentia isso. Kierkegaard continuava o solo: “Amigo, eu daria o seguinte conselho a qualquer um que vá ler o seu livro: “Dê três piques de duzentos metros antes de ler, pois petardo ele é de “tirar o fôlego” – SÓ PRA GARANTIR, SE É QUE ME ENTENDE! Hahahahahaha!” Pare com essa ironia. Está sendo deselegante comigo. “Estou? Estou, boris?” “Um pouco.” “Mas é por um bom motivo. É de TIRAR O FÔLEGO, se é que me entende. “Enquanto o fogo avança no arranha céu.” E depois, o que acontece?” O fogo sobe muito rápido. As pessoas se atiram das torres e ocorre o outro atentado. “Como isso seria descrito?” Leia o livro. “Posso tentar adivinhar?” Olhei pra Boris. Obviamente, havia contado o final. Diga: “Um segundo avião é jogado contra a torre vizinha.” Bravo. Isso mesmo. “Posso continuar? Imagine uma voz ao estilo fátima bernardes: “Depois de duas horas, dois dos prédios mais altos do mundo se desfazem numa montanha de poeira e fumaça.”” É a última frase. Correto: muito bem sacado o lance da fátima bernardes, inclusive. Sempre é assim que imagino. “Hmmmmm” Me olhavam cheios de malícia. Tinham algo contra mim. Kierkegaard: “Boris, eu conto ou você conta?” “Posso contar?” “Pode.” Por favor. Me insulte, mereço. Boris (tirando um celular do bolso e mostrando um vídeo do youtube): “Olha isso.” Era a reportagem do jornal nacional no dia onze de setembro. Não havia pesquisado aquela óbvia fonte histórica. De fato, deliberadamente me abstivera de ler qualquer coisa a respeito. Era como se eles fossem os meus atentados, porque os tinha vivido. Mas eram os atentados do mundo inteiro, transmitidos via satélite. Pra minha desgraça, vejo willian bonner e fátima bernardes soltando o verbo, com trechos muitos parecidos, e outros idênticos, aos do livro que me arrependia agora de ter escrito, que constrangimento: “A maior potência do planeta é alvejada pelo terror! WTC, Nova York: No mais importante centro financeiro do mundo, uma torre queima ao ser atingida por um avião! Enquanto o incêndio avança no arranha céu, um segundo avião é jogado contra a torre vizinha! E em menos de duas horas, dois dos prédios mais altos do mundo se desfazem numa montanha de poeira e fumaça.” Não havia dúvida. Muito daquilo estava no livro. O próprio título. A última frase. Era inegável que eu cometera um plágio descarado ao separar as frases de um telejornal em blocos temáticos e troncos de idéias. Senti vergonha de estar ali. Não estou me sentindo bem, qual é a minha parte da conta? Desculpe, eu.... acho que estou tendo um ataque de labirintite, um pouco de pressão baixa... “Acaba que o plágio também é uma arte, e se quer só um pouquinho de respeito como escritor pelo menos copie o voltaire ou o montesquieu ou o victor hugo. Plagiar o willian bonner é muito baixo.” “Baixíssimo. E merece ser fuzilado.” Percebi que ele tinha uma arma. Fiquei paranóico. Queriam me matar e eu tinha dado motivos.







VOLUME


Tenho ereções o tempo inteiro




Pensei: é bem provável que morra hoje. O dia fatalmente chegaria, apenas adiantei o processo. Mas de repente foi me dando a coragem louca dos suicidas, daqueles que sabem que o tempo é curto, que jogam aviões cheios de gasolina em cima de arranha-céus de aço. Boris, sempre te achei com jeito de viado. E há anos me masturbo pensando na sua irmã. Uma gostosa, ela. Sua mãe é uma senhora que, dependendo do grau etílico, eu até meteria a vara. Velha meio acabada, mas meto a pica.

Por favor, não quero mais ouvir isso.

Mas ouça!, disse ele, me agarrando o braço. Falei as maiores barbaridades. Ofendi pra valer. Os dois. Depois virei mais três taças de vinho. Comecei a ter delírios. Suava frio. “Não quer jantar?”, perguntou kierkegaard. Não. Perdi a fome. Vou ficar fumando e soprando fumaça em cima da comida de vocês. Se não quiserem que eu vá embora, lógico. Afinal fui convidado. Boris: “Fique. Beba mais. Fume a vontade.” Jantaram então como dois senhores civilizados, e eu de barriga vazia, mas muito orgulhoso, apenas enchia a cara. Comeram a sobremesa e tomaram o cafezinho. Durante um período em que fui excluído da conversa falaram sobre culinária mediterrânica e caligrafia japonesa, fizeram observações sobre o clima nesta época do ano, a greve dos eletricitários e o último filme do woody allen. Limparam-se com os guardanapos. Kierkegaard pediu a conta rabiscando no ar, e riu muito orgulhoso do próprio gesto. Estava exultante, pois ia me matar dali a poucos minutos. Era o que eu supunha, juro. Não aconteceu, como está percebendo, mas definitivamente passei por uma experiência metafísica e ao fim e ao cabo fiquei sabendo de uma fofoca, de gente que inclusive você conhece. Com a conta paga, andamos até um beco escuro que havia atrás do restaurante. Kierkegaard: “Não acho o fuzilamento a forma mais plástica de assassinato, mas é o que a legislação permite.” Boris: “Há formas muito mais divertidas.” “Muitas.” Estariam falando mesmo aquilo? Boris: “Vai morrer hoje um sujeito realmente insignificante pro mundo.” “Sempre achei um canalha. E nem desconfia o quanto é tapado.” Sei o tamanho exato da minha irrelevância. Boris: “Sabe? Sabia que já foi corno?” Claro que sabia. Já fui corno mil vezes. Não tenho ilusões a respeito. Também já dormi sem tomar banho, já caguei na calça, já usei droga aos quilos, toda hora minto pros outros. Minto o tempo inteiro. Em vários sentidos sou uma fraude e confesso que achava o meu achado um barato! “Enquanto o fogo avança no arranha céu!” E eu intuindo que era deus que tinha soprado! É humilhante plagiar o willian bonner, admito. Não que ele não seja capaz de escrever frases inteligentes ou versos inspirados. Há slogans publicitários que valem mais que a obra inteira de um josé de alencar, por exemplo. Estou com a boca cheia de cáries. Fui recentemente abandonado por uma pessoa. Problemas passionais gravíssimos. Agredi vocês sem o menor escrúpulo. Kierkegaard, havia mil maneiras mais delicadas de dizer que não gostei ou “entendi” seu livro, mas fui deselegante e mal educado. É perfeitamente natural que seja execrado. Falem mal de mim. Imploro. Boris: “Quanto tempo esteve numa “relação” com Simone?” Anos. Fui traído por ela, claro. Outra relação traumática. Até hoje tenho seqüelas. “Mas você sabia”, perguntou kierkegaard, “que no tal-e-tal dia, enquanto você estava em tal-e-tal lugar, acreditando que a simone estava fazendo tal-e-tal coisa, ela na verdade estava com fulano e sicrano fazendo isso-e-isso-e-isso?” Era uma fofoca muito cabeluda. Daquilo eu não sabia. O problema não é ser corno. As circunstâncias acontecem. Mas aquilo que eles me contavam parecia a mais sórdida mentira obrada pela espécie humana. Como tinham sido tão dissimulados comigo? Como eu conseguira ser tão inocente e não ver o óbvio? “Impressionante, não?” Na verdade nem ligo (mas ligo). Fiquei com as pernas trêmulas e o sangue fervendo. Sentia descargas de ressentimento inundando o cérebro, golfadas de rancor e desgosto, vergonha, vergonha! Desmaiei. Acordei depois de alguns minutos. Desmaiei de novo. Suava frio caído no beco enquanto os dois conversavam como se nada de errado estivesse acontecendo.

Perdão por tudo que fiz no passado. Faz tanto tempo, já podemos rir disso.

Rir. De fato.

Heidegger, desculpe mas vou ali

Hoje acordei pensando em você. Tomei um café amargo especulando sobre o que passa aí na sua mente mefistotélica. Percebi que uma intuição que sempre tivera – que você é um monstro amoral e dissimulado – não era por acaso. Escarnecendo do mundo aí no auge da sua arrogância. Kierkegaard e boris são dois fofoqueiros, não há duvida, você não passa de um inseto, e eu de um escritor medíocre que faz plagio do willian boner. Que sórdida a nossa turminha, não? Mas eles no fundo são meus amigos. Me arrastaram pro apartamento do filósofo existencialista. Dormi no sofá. Acordei de manhã e fui tratado a caldo de galinha. Tomei banho e vesti roupas limpas que me foram emprestadas. Fiquei deitado no sofá esperando passar a ressaca, com uma puta dor de cabeça. E uma desgraçada dor de barriga. Fui ao banheiro dar uma cagada e lá estava o grande sertão pousado ao lado do trono. Abri em uma página aleatória e pulei de cabeça naquela coisa linda e reveladora. Lendo o livro depois de dez anos, entendi de outro jeito. Estava num processo de purificação, de expurgar a minha inveja, a minha burrice. Num delírio de autoflagelação, imaginava o espírito de guimarães rosa ali no banheiro comigo me olhando cagar aquela bosta fina e envenenada, rindo o riso dos gênios e das pessoas com um espírito alegre. O pobre riobaldo se exaspera com a suposta existência do tinhoso: é passível que exista. É proseável. Dá pano pra manga. Porque talvez a porra do diabo exista e quem sabe esteja na sua frente. Nessa hora também senti a alegria inenarrável que é falar brasileiro, que é ler isso nessa língua em que fui alfabetizado. Fechei o livro e pus-me a chorar copiosamente. Cagava, chorava e peidava. Suava frio. Vomitei na pia, tirando de mim aquele ranço radioativo. Pensei: vou ler esse livro dez vezes e escrever uma tese de doutorado. Era como se o guimarães rosa estivesse me atropelando, como se fosse um trem descarrilhado caindo em cima da minha cabeça, rasgando a minha carne. Saí do banheiro mais leve e deitei no sofá de novo. O tal filósofo perguntou se eu estava melhor. Sim, respondi. Não sei como agradecê-lo. “Fique a vontade.” Depois almoçamos e conversamos sobre coisas fascinantes, que não convém mencionar no momento. Fofocamos ao seu respeito.

O que aquele velho viado falou de mim?

De tarde, chegaram outras pessoas. Boris e kierkegarrd voltaram. Fez-se um sarau. Uma atriz lindíssima leu um trecho lindíssimo do livro de kierkegaard. O filósofo brandiu uma revista e disse que ia ler “o último artigo do boris.” Era um freela que ele tinha feito pra um veículo de certo prestígio. Tinha acabado de sair do forno: o perfil de um escritor japonês que acabara de lançar um livro de mil páginas totalmente maluco. Fiquei curioso. Percebi que o texto do boris se baseava nos melhores e mais corretos fundamentos do bom jornalismo: cheio de referências, com bom humor e uma linguagem clara, rápida e bem humorada. Naquele momento eu estava apaixonado por aquelas pessoas, pela inteligência delas. Finalmente voltei pra casa. Li o lavoura arcaica de uma sentada. Vi coisas lindas que não tinha visto antes. Chorei de novo. Fui ficando com raiva de mim mesmo. Deitei e tentei dormir. Mas só conseguia pensar em você. Sim, você se tornou uma obsessão. Lembrei que um dia, bêbado, cheguei a falar: te considero um ótimo amigo. De todas as coisas sórdidas que fiz, essa era a que mais me causava desespero. Tinha também vergonha do que tinha escrito. Toquei fogo no “Enquanto o fogo avança no arranha céu” e apaguei o arquivo do computador sem pensar duas vezes. Era um alívio. Mas ainda havia algo que eu precisava fazer. Era falar pessoalmente contigo. Sabia que estaria nessa festa ridícula, como fiquei sabendo de mil outras barbaridades ao seu respeito, um cara que fura o olho pegando mulher de amigo, que pega dinheiro emprestado e não devolve, que seduz e achaca os velhos e corrompe as garotinhas, embebedando pobres adolescentes de caipirinha e fazendo sexo sem o menor cuidado nos estacionamentos, irresponsável, financista de aborto,

Será que dá pra falar mais baixo?

Me dá aqui esse livro, disse, me tirando o lavoura arcaica das mãos. Acho que você já me usurpou o suficiente e vou dar um basta nisso. Como pude ser tão tapado? Como não descobri antes quem é você de fato? Desculpe, tenho que te dar um tiro.