domingo, 14 de julho de 2013

#quecarapósmoderno



Aí eu disse pra Ele: mas o que afinal é o pós moderno? Disse desse jeito. Pena que a música tava tão alta, mas eu disse, senti que tinha que dizer aquilo, tinha que contestá-Lo, porque Ele estava errado e eu certo, era uma questão de justiça e sobriedade. E não só por isso. Queria propor aqui um pequeno alargamento temático e conceitual, se não se importa. Só queria perguntar assim pra Ele: estamos falando aqui dos pós moderno da maneira como o concebiam os pré modernos, os modernos, os contemporâneos, e esse tanto de gente morta? Estamos falando de modernismo artístico, filosófico ou estritamente histórico e cronológico? Saberá Ele que O Bastião da Modernidade – não confundir com modernismo - jazia naquele idílico dia de 1492 quando os árabes foram expulsos da Península Ibérica e retomada a Cristandade, logo na iminência da Descoberta da América, da Reforma Protestante, do advento do Antigo Regime, do Estado Moderno como hoje o conhecemos, fruto de maquinações e de teorias de gente como Montesquieu, Voltaire e o resto dos Iluministas, enfim, dO Capitalismo, da Primeira Multinacional da História, a Cia das Índias Orientais, fundada em 1649, a celebração da idéia de uma empresa de capital aberto, essa engenhosa criação humana. Era essa a modernidade ao qual Ele se referia ou será que eu estava enganado? E quando dizia modernismo fazia referência a coisas como Picasso, Dali, os futuristas e os dadaístas ou já era sob a sombra de um entendimento mais teórico ao estilo Baudrilard, Lacan, Deleuze e esse monte de gente ilegível? Enfim, o que eu gostaria de saber é o que Ele entende por...


Essa discussão foi a respeito do filme do Tarantino?


Exatamente! Não estou dizendo que o filme seja bom, mas o comentário que Ele fez foi raso e mal intencionado, foi de uma estupidez brutal, mas como sou civilizado apenas argumentei e não disse na cara Dele que Ele era burro. A frivolidade com que disse: “Achei muito pós moderno”, desdenhando, como se alguma coisa, só por ser pós moderna, fosse insuficiente. Mas talvez Ele discordasse de mim se eu Lhe dissesse uma ou duas coisas sobre responsabilidade. Também sobre honestidade, decoro, ética e probidade intelectual, essas que coisas que eu respeito embora pague um alto preço por isso. A gente se comunica por algum motivo e creio que devemos pelo menos tentar um entendimento e uma conversa honesta na mesma língua. Acho que Ele falou uma asneira e tava tentando explicar pra Ele, pro bem Dele,


Por que?


Por que o que?


Você tentava explicar pra Ele o seu ponto de vista sobre o que é e o que não é pós moderno?


Ora, por que? E por que não diria nada? Se não concordo! Quer dizer, não é que não concorde, só estava medindo o tamanho burrice Dele pra ver em quais termos a gente podia conversar. É basicamente isso. As palavras existem por algum motivo e elas têm poderes. Uma palavra mal dita, um fato mal interpretado, um conceito erroneamente compreendido, uma informação extraviada, e quais serão as conseqüências? Lavagem Cerebral? E isso é o mínimo. Eu acredito muito no poder das palavras e dos conceitos porque são eles que ajudam a gente a ler e explicar o mundo. Quando uma pessoa por exemplo diz “Jesus”, o que ela está evocando e o que está escondendo? Direita e esquerda por exemplo não querem dizer absolutamente nada, mas felizmente, pelo esforço do nosso intelecto, elas querem, de certa forma, em determinada circunstância, dizer alguma coisa. A palavra quer. É interativa. Isso sim é entretenimento. Mas não é apenas isso. Digamos que o pós modernismo começou depois da segunda guerra mundial, teve um revival nos anos setenta, e depois virou uma coisa totalmente mal compreendida. Estou tentando demonstrar que o universo é um pouso mais complexo do que parece e que exige um esforço da nossa parte. Isso é só um exemplo. Agora pegue uma coisa como Capitalismo, Fascismo, Anarquia. Multiplique por mil e vai começar a entender o tamanho da confusão, vai ver como ainda são inexplorados e escassamente povoados esses Continentes Conceituais

Fred?

Sim.

Sua braguilha tá aberta.

Ah, obrigado. Como eu ia dizendo, pense a respeito do Capitalismo – e nem vou lembrar aqui que também já vi Ele dando opiniões constrangedoramente ingênuas a respeito do tema – e do Marxismo. Pra todos os efeitos Marx foi o cara que “decifrou” o Capitalismo, que matou a charada, que abriu o cofre. Coisas como Materialismo Histórico e Dialético são tomados até pelos seus detratores como coisas de uma realidade imanente e inegável. Que a História Econômica deva a ele o seu quinhão, ótimo. Marx pode até ter compreendido as engrenagens da Revolução Industrial na Inglaterra, mas sabe o que ele diz a respeito da economia oriental? Que lá vigorava o Modo de Produção Asiático. Ótimo, bastante esclarecedor. E não venha me dizer que os orientais não eram capitalistas porque capitalismo é acumulação de capital e todo mundo acumula capital logo todo mundo é capitalista. O cara resume vinte mil anos de história em Modo de Produção Asiático. Na China, entre os aborígenes da Austrália, os nômades da Mongólia, as tribos paquistanesas, desde que o príncipe Sidarta Gautama teve o seu pequeno esclarecimento na floresta, até o Japão Imperial, tudo o que vigorava era o Modo de Produção Asiático. Talvez o Japão fosse um Japão Imperial “modernizado.” Viu como a palavra explica tudo, sem cair no etnocentrismo, porque é auto evidente? Mas será que Ele sabe disso? Mesmo assim Marx é respeitado e debatido e crucificado e tudo o que tem a dizer a respeito da economia oriental é isso. Está percebendo como os conceitos são importantes? Como são frágeis, instáveis, deslizantes, mas ainda assim os únicos que temos?


Fred?


Sim.


Que importância tem a opinião Dele a respeito disso? Será que não é um assunto irrelevante? Que não estava tentando parecer mais inteligente que Ele por pura vaidade?



Mas eu sou mais inteligente do que Ele! Se você vê uma pedra na sua frente diz: “nossa, uma borboleta!” ou ao invés disso pensa: “eis aí uma pedra e é melhor eu me precaver pra não dar uma dedada nela”? Se vê vicejar a ignorância, a corrupção, o desentendimento, a burrice, e não faz nada pra conter ou estancar essas coisas, então é conivente com elas e tão culpado quanto todos os filisteus, os estelionatários, os infectos líderes religiosos, todos eles. Aliás, Ele é crente, não é?


Crente é uma palavra um pouco forte. Vai no culto uma vez ou outra com a mãe, eu acho.


Sabe qual a opinião que tenho das pessoas que se deixam lobotomizar deliberadamente por líderes religiosos? Quer que eu diga o que penso a respeito delas?


Não precisa.


Então. Ele disse que tinha achado o filme do Tarantino muito “pós moderno.” Talvez o Seu pastor tenha sugerido um dia que pessoas pós modernas são promíscuas e imorais e coniventes com a violência e Ele comprou a idéia. Daí a alistar-se numa tropa de choque fascista, regida por algum filho da puta, é um pulo. Esse tipo de gente é altamente influenciável, quase sempre pro lado negro da força, pro mais fácil, mais simples e mais simplista. Saberá Ele algo a respeito das qualidades exprobratórias do conceito que irresponsavelmente usou, das idiossincrasias, dos limites e releituras? Creio que não, sinceramente creio que não.


Hnpf.


E você sabe muito bem o quanto sou discreto nesse ponto, não faço a menor questão de esfregar o meu currículo na cara de ninguém, pelo contrário, me esforço e sou terrivelmente tolerante ao conversar com pessoas sobre coisas que elas ou desconhecem ou não conhecem direito, sou um poço de complacência com néscios e sicofantas que acham que “politeísmo antropozomórfico” é o nome de alguma doença de pele. Vivo num país de iletrados e sei lidar com isso. Se as pessoas desconhecem o passado, se elas não sabem ler e interpretar o presente, o que eu faço com elas? Explico que a mais b é igual a c, não a d, porque é assim que as coisas acontecem, me desculpa se o céu é azul mas não posso fazer nada a respeito. Já conheci pessoalmente praticamente todos os maiores historiadores do brasil, freqüentei Simpósios, Congressos e Mesas Redondas com eles, participo de projetos com eles, o Laurentino Gomes, a Lilia Swartz, me correspondo com eles, escrevemos introduções e orelhas uns pros outros, resenhamos as novidades, celebramos e ressuscitamos autores esquecidos, estamos por dentro do debate. Já emborquei duas garrafas de uísque com Élio Gaspari falando sobre o que é e o que não é pós-moderno, e não chegamos a conclusão nenhuma, aí me vira Aquele sujeito e diz que o filme do Tarantino é meia boca por que é pós moderno. Pra quem?


Se o ponto é que o pós modernismo é uma grande confusão, por que não compreender o pequeno tropeço Dele? Ele apenas se confundiu, ou talvez não tenha pensado tanto no assunto.


Ele se confundiu não, Ele falou merda, e não quero ficar bancando o semiótico porque enquanto a naturalista aponta a realidade o lingüista discute o dedo. Mas convém insistir só mais um pouco: Ele estava errado. Errado. Só isso. E talvez não exatamente por ignorância, mas quem sabe por conta de um dissimulado mau caratismo e uma repugnante preguiça mental? São apenas ilações, talvez maldosas, mas quem disse que sou perfeito? Sabe quando você tem a nítida sensação de que uma pessoa é burra, mas burra mesmo, tipo completamente estúpida mesmo mesmo, de fato e direito, com todas as honras e todo o merecimento? Vai me dizer que nunca teve essa impressão de ninguém? O filme do Tarantino é tão pós moderno quanto eu ou você ou essa mesa, na medida em que tudo – repito, tudo – é pós moderno. Agora, analisando mais perto, com mais cuidado, a gente vai catalogando os elementos e fazendo as conexões e catando as referências.


Fred?


Sim?


Eu gostaria de trocar de assunto. Tem uma coisa que preciso te contar.


Só um minuto. Deixa eu terminar meu raciocínio. A história e os conceitos históricos existem por algum motivo, não é por acaso. Há mal entendidos, claro, mas deve haver, é imperativo que haja alguma continuidade, algum lastro, algum indício. Existe um motivo. Uma causa, uma conseqüência, aliás várias, incontáveis, contraditórias, às vezes pouco evidentes, e isso faz parte do fascínio da coisa, o arcabouço teórico, a erudição, o conhecimento, a inteligência. Calma, que ainda não me vangloriei o suficiente. Há mais. Eu não só li A Crítica da Razão Pura em alemão como encontrei pessoalmente, no saguão marmóreo da Universidade de Oxford, sob a influência mística de séculos de história, historiografia e historiometria, um senhor muito gente fina chamado Eric Hobsbawm, pra mim o homem mais inteligente vivo. Digo e repito que não quero confundir a Grande Obra do Mestre Picasso com a Grande Pica de Aço do Mestre de Obras: ele é apenas um mortal, como eu e você, mas é no fundo um homem iluminado porque tremendamente e assombrosamente inteligente. Eu achava que Hobsbawm já me havia fornecido toda a sua cota de felicidade ao publicar seus livros: li e reli e fichei e resenhei todos, brilhantes, magníficos, estupendos: a trilogia sobre o século XIX, meu deus, a Era das Revoluções, do Capital, dos Impérios! Logo na primeira linha dA Era dos Extremos, quando vai explicar as causas profundas da Primeira Guerra Mundial, e pra isso faz uma referência banal à visita de Miterrand à Sarjevo em plena década de noventa, já depois do Desmoronamento, dA Era de Ouro e da Catástrofe – a Guerra Total, a Carnificina, os duzentos milhões de mortos produzidos por Hitler e Stalin e os incontáveis caudilhos das nossas gloriosas republiquetas. Eu achava que esse homem maravilhoso já tinha elevado meu espírito até o último elétron da estratosfera, antes de entrar no vácuo, no vazio e na incompreensão. Mas não. Eu ainda encontrei, num Congresso, esse homem quase centenário. Miúdo, pequeno, na época devia ter uns noventa anos. Mas no auge da lucidez, te garanto. Tomamos um café, ao pé da escadaria daquele Templo do Conhecimento. Eu me sentia esmagado pela grandeza daquele homem ali na minha frente, ele falando idilicamente sobre o tempo nublado da Inglaterra. Há uma linhagem de historiadores britânicos composta de homens sérios e probos na profissão, gente que pensa e publica livros e artigos, que trabalha na ONU, em embaixadas, em cursos altamente especializados. Por acaso eu citei que trabalho em cursos de pós graduação, que presto consultorias, caríssimas, pra pensar sobre o passado? E sobre como esse mesmo passado se emborca no presente? Lógico que não, porque sou elegante por natureza, humilde e correto por pura intuição. Vamos falar um pouco de intuição.


Fred, eu realmente gostaria de...


Não, faço questão, falemos só um pouquinho de intuição, de coisas que “estão por aí.” Devo de novo admitir que já vi Ele dando opiniões ingênuas a respeito de instituições públicas, por exemplo o Senado, sugerindo que o nosso país, que é ruim, ficaria melhor sem essa casa legislativa. E ao dizer isso Se achava altamente revolucionário, salivando no seu feitiche terrorista. Ele até botaria uma bomba lá dentro. Bem, ocorre que a instituição dO Senado existe, como você muito bem sabe, desde A República Romana. É adotado em praticamente todos os países democráticos – os mais ricos e estáveis, pelo menos – e é provável que haja um motivo pra isso. Outra coisa que se faz desde os tempos do Ulisses e do Minotauro são as Arenas. Arenas pra gladiadores, teatros, todo o tipo de espetáculo. Sobre as Pirâmides e o aparecimento recorrente delas em todos os continentes não vou me alongar: você sabe ou intui que o ser humano faz há milhares de anos coisas como Senados, Arenas, Pirâmides, Cemitérios – e, por fim, Zigurates - por que há algum motivo, alguma gosma junguiana, qualquer forma de mapeamento cognitivo do que se chama impunemente “o inconsciente coletivo.” Pelo amor de deus, não vá achando que ao dizer isso quero eximir de culpa os nossos senadores, ou você não entendeu nada, mas sei que você me compreende porque é meu amigo e porque foi abençoado pela simples faculdade de raciocinar. Devia agradecer todos os dias por isso, é mais raro do que parece.


Fred, eu...


Mas talvez haja uma explicação. Outro dia eu estava relendo uma resenha sobre o Arco Íris da Gravidade e o resenhista, cauteloso na exaltação àquele livro recém lançado e quase incompreensível de setecentas páginas, mas crente que há ali algo de brilhante, escreve: “O Arco Íris da Gravidade é um dos poucos livros de que se possa dizer – sem soar hiperbólico – que é uma obra prima.” Primeiro: saberá Ele, do alto do seu Pedestal do Desconhecimento, à deriva no seu Oceano Particular de Burrice, que, se há uma coisa legitimamente pós moderna, pós moderna dos pés à cabeça com selo de qualidade e de garantia, com nota fiscal e firma reconhecida, é O Arco Íris da Gravidade? Que, mais do que o visual cyberpunk de Blade Runner, que o humor sem sentido do Monty Pyton, que a fama involuntária de imerecida de Paris Hilton, que a selvageria tecnológica do Onze de Setembro, que o último livro de Fredric Jamenson em parceria com Stuart Hall, que a playboy da Fernanda Young e da Marge Simpson, que o último e violento filme de Lars Von Trier, mais do que tudo isso junto e multiplicado, é o Arco Íris da Gravidade que engendra e amplifica todas as características do pós moderno? Anarquia, sátira, irrisão, auto referência. E pense só nisso:


Fred, tenho uma coisa séria pra...


Eu, que conheço e domino os conceitos muito melhor do que Ele, sou muito mais reticente, cuidadoso, responsável ao usá-los. Sim, no fundo estamos falando mesmo de responsabilidade, o tema central de uma geração que pôde cresce sem praticá-la. Ele é um funcionário público extremamente bem pago. Não é?


Tem lá a Sua estabilidade...


Trem da alegria?


Concursado.


Sabe o que penso a respeito de burocratas que fazem um trabalho completamente mecânico e ganham quinze mil reais com isso? Num país onde o salário mínimo é quinhentos reais?


Sinceramente acho que não é hora de fazer proselitismo e aliás eu


Proselitismo? Mas só me deixe terminar: o Arco Íris da Gravidade é realmente o que se poderia chamar – sem, e isso é importante, soar hiperbólico – de uma obra prima? Me defina obra prima.


Algo brilhante, genial, assombroso...


Poderia me dar exemplos? Não vale O Arco Íris da Gravidade.


Bem, na verdade eu...


Viu? Percebe como somos reticentes antes de hiperbólicos? Como somos escrupulosos ao julgar ou determinar algo assim, à queima roupa, sem ponderar? Não Ele, do Seu ponto de vista (Dele) que não é o meu e nunca será. O filme de Tarantino é pós moderno, pois sim. Aliás há bastante tempo tenho reparado que quase tudo Nele é hiperbólico. Seu senso de humor, que pode até contaminar os idiotas... A fartura com que usa a expressão “genial.” Se liga a TV e está passando o programa da Angélica, Ele diz: “genial.” Se pede uma pizza e percebe que veio com borda de catupiry, diz: “genial.” Se ouve uma piada suja que O faz rir decreta, gargalhando, entre golfadas – haverá comportamento mais degradante? – genial. Saberá Ele a definição de “gênio”? O que diria Ele ao cruzar na rua com Eric Hobsbawm?


Talvez Ele apenas tenha outros interesses. Foi ver o filme, achou pós moderno, e pronto. Ninguém precisa ser crítico de cinema como você.


É que me da um certo desamparo. Me esforço tanto pra ser assertivo, cunhar frases com elegância, sarcasmo e exatidão. O prazer pau-durecente de uma oração bem escrita, corretamente formulada, será que sou só eu que sinto isso? A ironia tão ingênua que é quase dissimulada por minha pureza. Mas ao mesmo tempo tão torpe, tão fatalista. Você me conhece profundamente e sabe do que estou falando. Os eufemismos tão discretos, mas tão discretos, que podem passar por hipérboles distorcidas. A precisão quase cirúrgica com que escolho as metáforas, como as meço, peso e desnudo cuidadosamente, as metáforas sub-reptícias, apenas sugeridas, evocadas. E principalmente as ambigüidades: posso muito bem estar dizendo uma coisa e sugerindo outra, se partirmos dessa premissa, e é tão divertido! Não acha? E os solecismos propositais, as redundâncias tão carinhosamente formuladas? “O filme do Tarantino é pós moderno” poderia ser o primeiro termo de um silogismo, um ponto de partida, uma escolha teórica, mas não: é tudo o que ele tem a dizer sobre o assunto, como Marx sobre o Modo de Produção Asiático.


Talvez seja isso. Você percebeu que Ele não é burro, mas hiperbólico, e isso se chama compreensão.


Tudo bem, posso ser compreensivo com uma pessoa hiperbólica, mas deveria haver algum tipo de multa ou punição pra quem sai por aí falando merda impunemente, quem dispara a sua rajada de anacronismos no mundo como os favelados cariocas dão tiros pra cima. Sabia que aquelas balas não se dissolvem na atmosfera, que elas caem em cima das pessoas? Que elas machucam? Você ia querer, por exemplo, que Ele fosse professor de história do seu filho e o ensinasse na aula que pós moderno é isso quando pós moderno é aquilo? Você gostaria que Ele fosse o professor de matemática dele e dissesse que “a soma dos quadrados dos catetos é igual a soma dos sovacos da Medusa”? Gostaria?


Mas Ele não é professor de história. E, sério. Tenho uma coisa pra te contar.


Sim?


Uma coisa que você talvez não goste de ouvir.


Sim?


É bom estar preparado e pensar bem no valor da nossa amizade.


Você tá de sacanagem com a minha cara?


Não.


O que você quer dizer por “pensar bem no valor da nossa amizade”, que papo de doidão é esse? O que você tá sugerindo? Sabe há quantos anos somos amigos?


É por isso mesmo.


Sabe o que poderia destruir nossa amizade? Nada. Nem se você contasse que comeu a minha mãe, que meteu a rola em todas as minhas namoradas, que me roubou dinheiro, que comeu meu cu quando eu estava bêbado e dormindo, que espalhou pela cidade que eu era viado e broxa, nunca, de jeito nenhum, nada poderia afetar nossa amizade. Já me exasperei falando sobre o valor das instituições, você ouviu. Não tolero a igreja católica, mas compreendo que haja uma instituição com dois mil anos de história, com os mesmos valores, mesmo que todos judiciosamente violados. E qual seria a mais antiga das instituições, senão a amizade? Quer que eu te lembre o que passamos juntos? A nossa banda?


Fred,


Os Zigurates da Babilônia? Montamos uma banda de rock, os intrépidos e inequívocos Zigurates. Fizemos dezessete shows e fomos por quase um ano astros do rock.


Foi inesquecível.


Eu, Frederico, o bárbaro meio latino e meio germanizado. Você, Thiago, nossa referência bíblica. E André, a origem grega de tudo, que está na Europa. Há um ano e meio ele está na Europa e quando voltar em que pé você acha que vai estar nossa amizade? Você troca e-mails com ele?


Nunca.


E precisa? Quando ele veio, no final do ano passado, na véspera de Natal, ainda do aeroporto, antes de ligar pra mãe, ele ligou pra quem?


Pra gente.


Isso é uma Confraria e esse tipo de coisa não se dissolve desse jeito. Como assim, “pensar bem no valor da nossa amizade”? Você lembra que fomos um pequeno fenômeno, não lembra? Que saiu uma matéria muito bacaninha na Roling Stones dizendo o quanto a gente era competente, engraçado, uma verdadeira promessa do rock brasileiro, e isso fez bem pro nosso ego, você lembra disso?


...


Lembra que era um texto bom pra caralho? Que dizia que a gente era uma mistura de Tom Zé com Mutantes, quando a gente ainda nem conhecia isso direito? Lembra o que falei a respeito da intuição? A gente tava descobrindo e desbravando o Continente Música: um Power Trio, guitarra, baixo e bateria. Os Zigurates da Babilônia. Eu sei que se eu morresse amanhã a única pessoa que com certeza absoluta iria ao meu enterro é você. E o André. E você sabe que o contrário é verdadeiro. Se eu estiver escalando o Himalaia e ficar sabendo que você morreu, freto um avião e volto na hora. E a gente não faria isso por obrigação moral ou coerção cultural, não, a gente não é tão mesquinho pra isso. A gente conhece o valor das coisas. Por exemplo, voltando a falar Nele...


Porra, de novo?


É que vem a calhar: o que sabe Ele a respeito da palavra “amizade”, por exemplo? Está achando esse diálogo muito socrático?


To, na verdade.


Mas me acompanhe, é rápido: você reparou no tamanho do vocabulário Dele, como é pequeno? Não deve passar de setenta palavras. E quando aprende uma palavra nova, deve usá-la basicamente como um papagaio. Ele é o tipo de homem que se fosse escritor escreveria “oblívio” ao invés de “esquecimento”, faria esse tipo de truque pra impressionar os jumentos. Qual a opinião política razoável que já ouvi Ele dando?


Por que você tá com tanto rancor Dele?


E por que não teria Ele discernimento? Será que é assim tão involuntário? Percebe? Será que Ele não se “esquece” de ser inteligente de vez em quando, porque é mais prático? Me responda com sinceridade: uma situação hipotética: um dia Ele vai à padaria e compra com uma nota de vinte um maço de cigarro de cinco reais


Ele não fuma.


Aí no troco Ele recebe quarenta e cinco, porque a balconista se confundiu, achou que vinte eram cinqüenta, já trabalhou nove horas e é vesga, coitada. Ele entrou com vinte, saiu com um maço de holywood menta – não respeito homem que fuma essa porra com gosto de balinha – e quarenta e cinco legais. O que Ele faz? Por que tenho a vaga impressão que não devolveria, porque é anti-ético, aproveitador, egoísta, irresponsável, irresponsável? Já reparou como as mãos Dele são frias e o jeito dissimulado? É um fura greve. Um fura olho. Um traidor, um tipo de pessoa que fala mal de você pelas costas.


Poderia me emprestar o isqueiro?


Claro. Ele acha que ao imputar o prefixo pós ao conceito de moderno está decifrando alguma coisa, quando na verdade está boiando na Geléia de Maionese. Ele não é alcançado ou sequer ultrapassado pela modernidade, mas a tangencia ao largo, como um zumbi extraviado no tempo, narcotizado pela publicidade, o futebol e a religião. Seus imundos vícios de linguagem. Toda a vez que uma pessoa usasse um pós, um pré, um neo, um pseudo, ela tinha que pagar um pedágio, um imposto. Você quer falar sobre o neolibrerais? Pois eu só falo sobre os liberais e a escola liberal e os teóricos do liberalismo. Excluo e abomino o prefixo, como não tolero o preconceito. Por que criminalizar o racismo e não também o burrismo? “Policia, ele me chamou de pós moderno! É um insulto à minha dignidade! Me sinto ultrajado!” Viu o que Ele fez ao conceito de modernidade? Como cagou em cima, passou um laço e ainda achou bonito ser feio, como se achou inteligente no comentário? Ele, o pós pseudo neo burro?


Acho que tínhamos superado a fase em que O julgávamos burro.


Você viu o filme por acaso?


Vi.


Achou pós moderno?


Em certos aspectos.


Por exemplo?


Na trilha sonora de violões mexicanos que lembra faroeste. Na referência aos filmes de guerra. Na interpretação hiperbólica – ou simplesmente exagerada – de Brad Pitt. Na grande carnificina final.


Então agora toda carnificina é pós moderna?


Eu diria que, se tivesse que definir em uma palavra o pós moderno, diria carnificina.


Por que?


Pelo que a palavra evoca: a matança indiscriminada de gente. O pesadelo de haver uma metralhadora carregada à sua espera, uma bomba plantada no aconchego da sua poltrona, um atentado terrorista na estação de ônibus. E não estou me atendo apenas ao terrorismo político, mas também psicológico. A sensação de saber que há crianças que vão se exterminar a qualquer momento, como acontece toda hora nos estados unidos. O pesadelo de viver numa sociedade pós industrial – posso? – onde os empregos estão acabando, as florestas sumindo, os rios secando, o ódio fomentando e crescendo, enfim, a Nova Ordem Mundial de Caetano Veloso. Posso?


Pode.


Essa sensação de insegurança, de incerteza, de ser um peso despencando no vazio, suponho que seja pós moderno, e é isso uma carnificina. Um monte de gente morta indiscriminadamente, uma celebração sanguinária da violência e do Incorrigível Animal Humano. Se o filme termina com uma grande e bela carnificina – em que um cinema lotado vai pelos ares e as pessoas além de serem explodidas são também metralhadas – pode, quem sabe, talvez, haver nele algo de pós moderno. E o filme é bem violento, pessoa são escapeladas, têm suas cabeças arrebentadas por tacos de basebal, e convenhamos é um filme do Tarantino, e o nome dele parece de comida italiana


Ótimo. Então a violência e a carnificina são os corolários da era pós moderna. Antes disso, as pessoas eram todas boazinhas umas com as outras, o mundo era um lugar fofinho feito de algodão doce habitado por gente fina, elegante e sincera? Nero? Um filantropo. Gengis Khan? Um altruísta. Os faraós egípcios? Legítimos entusiastas da legislação trabalhista, inclusive alguns ajudaram a fundar o petismo. Shaskspeare? Escrevia inocentes sitcons renascentistas pra um publico bem rede globo, bem família. E Sade? Apenas um excêntrico com hábitos pouco higiênicos... como esporrar sífilis nos cus das debutantes e costurá-los...


Fred, eu fiz algo que talvez venha a magoá-lo. Não foi por mal.


De novo essa história? O que você poderia ter feito de tão terrivelmente hediondo? Estou achando que tem a ver com mulher, é isso?


É.


Você fornicou com alguma das minhas ex namoradas. É isso?


É.


Sabe o quanto isso é irrelevante? Sabia que me insulta, dizendo que vou ficar magoado porque deu umas lambidas na Flavinha, na Silvinha ou na Paulinha? Sinceramente será que me conhece?


Na verdade foi com a Sara Vaz.


Ué.


É isso. Só espero que me perdoe.


Mas, como assim? Não, você deve ta se confundindo com a Silvinha. Eu lembro que ela te dava mole. Mas a Sara Vaz.... quando?


Naquela viagem pra Pirinópolis.


Ué. Me conta isso.


Lembra o dia em que ficou com o Baiano jogando sinuca até mais tarde e ela disse que ia dormir na pousada? Então? E outra vez também, na cachoeira. Só isso. Me perdoa?


Você ta trocando as bolas, tu anda fumando muita maconha. Nessa época você ficava com a Renata, lembra? E eu e a Sara Vaz, a gente tava namorando sério. Foi um ano de namoro. Nesses tempos pós modernos é uma pequena eternidade. Conheci a família dela e até ia no shoping com as velhas. Até acredito que você tenha comido ela em outra fase no namoro, mas não nessa época. Era O Auge. Rolava sexo toda hora, ela tava completamente apaixonada, não to me gabando, é verdade. Foi justamente nesse feriado que rolou o dia dos namorados. To lembrando. É, você foi nessa viagem.


Lembra do dia que eu to falando?


Claro! E sabe por que me lembro perfeitamente? Sabe o que ela me deu de presente no dia dos namorados? Esse chapéu que eu estou usando! Esse belo e original chapéu panamá, de veraneio, feito de palhas fortes, com essa fita estilosa no meio. Não fico com cara de Espanhol e de Homem Mediterrânico com ele? Acho que usar chapéus é um hábito elegante que infelizmente foi perdido, acho lindas aquelas fotografias dos anos trinta em que toda a multidão usa chapéu. Não que eu saia usando ele toda hora, mas num samba, num dia de sol! Ele é muito útil, e é bonito. Foi-se o namoro mas ficou o chapéu e sempre achei que foi uma troca justa. A verdade é que gosto desse chapéu. Porra, na fotografia que eu tirei com o Eric Hobsbawm... aos pés das escadaria de Oxford... ao lado daquele colosso de conhecimento e discernimento... não... eu tenho certeza que você tá se confundindo...


Naquele dia você ficou jogando sinuca e eu fui com ela até a porta da pousada. Rolou um beijo, eu entrei, e foi isso.


Mas esse dia... eu comi ela... ela fez um streap tease...


Pois é, aquela ali gostava de dar.


Mmmmmmm....mas voc...............você... não, você tá se confundindo. E na cachoeira? Como é possível? Não entendo


Levei a camisinha dentro da sunga... fomos no mato quinze minutos... você tava nadando...


Levou o que aonde?


Me perdoa?


Isso me parece um pouco premeditado demais, um pouco maquiavélico demais pra ser verdade... você ficou com meu isqueiro?


Aqui. O que você dizia mesmo a respeito do temperamento Dele? Que havia uma certa ambivalência, é isso? E o quão enganado Ele estava a respeito do pós moderno?


Você...


Aqui, deixa que eu acendo pra você. Há toda uma construção teórica que fertiliza o conceito de modernidade e eu gostaria que a gente...


Você...


E Ele.


Hã?


Vamos então xingá-la pra exorcizar logo os ressentimentos? Aquela Rameira Rombuda da Xoxota Larga, aquela Boceta de Esgoto, aquela Filha da Puta Promíscua e Dissimulada... chega? Que me bater? Vai bater Nele? Nela?


Mas...


Mas você tava dissertando sobre o pós moderno...


Sim, o pós moderno...


O conceito engendra uma série de problemáticas, não é? Tanto à nível ontológico quanto epistemológico, ou estou enganado?


Não existe o pós moderno nem nada remotamente parecido com isso... é uma mentira... você acreditou nisso durante esse tempo todo....


Sério?


As fundações do conceito, o cimento das estruturas, a raiz da árvore sintagmática que dá lindas e suculentas mentiras com gosto de pós moderno, tudo mentira, falácia, engodo e confusão... você quer me confundir, certo? Quer me pegar em qualquer deslize, conheço essa tática há mil anos, ela é desonesta... mas você quer mesmo saber por que a modernidade é uma fraude e a pós modernidade uma híper fraude elevada ao quadrado amplificado da fraudulência? Mas... o André também?


O que...


Você sabe... isso...


O André? Não. Que eu saiba. Não, claro que não.


A confusão. O logro. Você quer me desnortear e me dar golpes na garganta, no olho e no saco, você não sabe brincar e é uma criança mimada com histeria edipiana e compulsão pelo terrorismo psicológico, a carnificina mental... não... você e Ele acreditaram o tempo inteiro que eu estava acreditando, que O levei a sério quando me dispus a discutir o conceito de pós moderno, porque isso não existe, é mentira, mentira... A Reconquista da Cristandade? O Cientificismo? O Antigo Regime? O Iluminismo? Por onde começo?


Por onde achar necessário, desde que um dia me perdoe ou me compreenda.


Quem sabe talvez pelo Velho Testamento? Sabe qual o foi o primeiro livro impresso por Gutember, o pai da gráfica moderna? O maior best seller da Reforma Protestante? Já se deu ao trabalho de interpretar o Gênesis, esse Pai Glorioso da Superstição e Patriarcalismo? Já viu como os devotos interpretam a Criação do Universo? Ele vai ao culto, mas terá Ele lido os mandamentos? Não, eu que sou o materialista, que tenho a consciência plena de que vou-virar-rango-de-verme, sei de cor e salteado todos os mandamentos, inclusive aprendi o be-a-ba de hebraico, já li Corão e a Tora, sei tudo de Zoroastrismo, Karma e Hinduísmo. É assim que começa o troço: deus, entediado, resolve criar os mares e as pedras e os periquitos, depois cria e homem e a mulher e diz pra eles ficarem bem longe de um certo negócio, mas claro que diz isso de sacanagem, ele é na verdade um sádico que gosta de ver o martírio e o sofrimento dos outros, aí é claro que eles vão lá e metem o dedo e futucam o tal negócio e se lambuzam e deus chega com cara de bravo e diz “quem é que fez essa merda?” e o homem: “foi ela, foi ela!”, e ela “eu fiz porque sou burra, fui corrompida pela serpente!” e deus paga-lhes um sapo e dá uma humilhada básica e de repente eles agora eles têm o conhecimento das coisas e sabem que devem esconder um do outro a rola e a xota e é aí que começa ruína da nossa ambivalência, uma história no mínimo mal contada mas ilustrativa, por que parte de um pressuposto, que é o engano. Mesmo com a consciência pesada o homem e a mulher fornicam mais um pouco e aí nascem dois belos filhinhos, e o que um irmão faz com o outro? E ainda indicam a bíblia pra crianças. O início é um experimento científico anti ético em que cobaias são torturadas. Há culpa, remorso, uma família disfuncional e, claro, um assassinato. Aí vieram um monte de patriarcas que viveram oitocentos anos – quem precisa de Garcia Márquez? – e são todos sacaneados por deus, que diz coisas altamente maduras como “dê uma machadada na cabeça do seu filho pra provar que me ama.” Tempos depois nasce o filho de uma pomba que multiplica o vinho e elabora parábolas complicadíssimas pra chegar a conclusões como “amem uns aos outros e parem com a filha da putagem, seus putos”, mas perdoa!, perdoa!, eles não sabem o que fazem!, se matam e se escapelam e se trucidam e se torturam, mas não sabem o que fazem!, foram lobotomizados pela Belzebu & Azmodeu Cia Limitada! E depois esse mesmo hippie – sim, um hippie vagabundo que ao invés de trabalhar vai para o deserto meditar!, que lindo! – ressuscita! Os vermes subitamente desaparecem e ele sobe aos céus! É uma alegoria? Uma revolta metafísica contra nossa mortalidade? Não, é uma mentira! As pessoas não ressuscitam, e não importa o quão ardorosamente crente você se imagine, o quão reto e honesto nas suas ações, tampouco importa o tamanho da sinceridade que supostamente aplica ao ato de ajoelhar-se, você é que não será o próximo a passar pela experiência. Nenhuma deidade de humor volátil vai julgar atos nem dirimir pecados. Essas coisas simplesmente não acontecem.


Acha que não sei dessas coisas?


Não importa: não é esse o axioma do pós moderno? Não é esse niilismo barato a própria quintessência da Geração X, a morte das utopias? Já que elas estão todas mortas, que tal um pouco de necrofilia? Que tal exaltar a Ciência, essa maravilhosa maquina de produzir bombas, granadas, metralhadoras, vírus e bombas sujas? Não é o realismo-sujo uma das principais escolas literárias do pós moderno? Vamos sujar um pouco mais a realidade e untar de bosta nossa vil grandiloqüência? O que a modernidade trouxe é a nossa própria extinção e aniquilação, e o que a ciência produz, ao fim e ao cabo, é lixo, zilhões de toneladas de lixo tóxico, radioativo, venenoso. O que fazemos com esse lixo? Enterramos bem de baixo da terra pra que o cheiro de morte e podridão não se espalhe, pra que tenhamos a impressão de que existe um futuro pras próximas gerações. Se ao menos tivéssemos permanecido na idade da pedra, erguendo zigurates e monolitos, morando em cavernas... não consigo... não consigo mais usar esse chapéu...


Não precisa. Vamos queimar esse troço logo?


Eu ali, ao lado de Eric Hobsbawm, com o meu chapéu panamá, aos pés da escadaria de Harvard... essa é minha foto de cabeceira, fica ao lado da cama, todo dia olho pra ela com orgulho... e o chapéu na minha cabeça o tempo inteiro, escondendo o chifre...


Então. Posso queimar?


Vamos primeiro esclarecer um pressuposto. A respeito dessa história sórdida que acaba de mencionar. É provável que você tenha acreditado quando fingi surpresa, porque sou um ótimo ator e sei como ninguém dissimular tudo o que passa aqui dentro. Mas existem duas possibilidades. É tudo uma grande mentira e uma grande brincadeira sua. Ou você, quando contou, imaginava que eu não sabia nada quando desde sempre sabia tudo. É interessante que após todos esses anos você ainda imagine que possa me enganar e me aviltar com esse tipo de coisa.


Nunca quis te aviltar em nada.


E não queria aqui me alongar sobre a corrupção e a amargura que se instalaram como um câncer maligno bem dentro do seu estomago, mas permita, porque somos amigos, afinal. Quer que eu defina um corrupto? “Aquele que age desonestamente em benefício próprio ou de outros.” Conhece alguém desse jeito? E ao mesmo tempo haverá algo mais pós moderno do que um corrupto esclarecido, alguém que conhece os limites de uma pessoa civilizada mas que age como um homicida semi-bárbaro porque é cult, por que é fashion? As drogas, o aborto e você, tudo a ver! Você conversando com Ele sobre a novela do Globo e a rodada do Brasileirão. Você andando com o livro do Deleuze debaixo do braço! Meus Deus! Saberá você que há toda uma geração de descontrucionistas, da qual Deleuze é o maior anti propagandista – porque esses putos não são a favor de nada, nem deles mesmos – que escrevem e reescrevem tomos e coletâneas pra provar que a) tudo é aleatório e imensurável e nada tem a ver com nada e b) nem a frase anterior com a próxima? Será que conquanto pouco e ainda que quase nada você consegue apreender isso? Sinceramente acho tudo muito complexo e relativo, por exemplo você dizendo que Ele é isso e ela fez aquilo. Estamos falando afinal de contas das mesmas pessoas? O que ganharia eu acreditando nos seus boatos e fofocas, mesmo que tivessem três por cento de realidade? Então agora você é da galera que lê e discute Deleuze e Ele acha o filme do Tarantino pós moderno. Queria estar dentro da sua cabeça quando estava lendo aquele livro, só pra fotografar e enquadrar e usar de papel de parede pensamentos do tipo “olha só que tanto de palavras complicadas e frases misteriosas, devo estar ficando mais inteligente lendo isso, de algum jeito, mesmo que não esteja entendendo nada” ou “aqui ele fala de um mundo desterritorializado, deve estar se referindo à internet e ao capitalismo.” Posso? Separei aqui um trecho do livro, um dos mil aforismos que a boneca chama de platôs. Mil! Pra provar que nada tem a ver com nada! Milhões de exemplares vendidos, Congressos e Teses de Doutorado sobre essa merda embrulhada em papel fosforescente! O Rizoma e o Corpo sem Órgãos é o meu pau! Posso? “Deus é uma Lagosta ou uma pinça dupla.” Reflitamos.


Vamos pedir uma pizza?


Vou falar de novo, reflitamos, mastiguemos. “Deus é uma Lagosta ou uma pinça dupla.” Devo advertir que não acredito em deus, que tive esse esclarecimento aos oito anos de idade ao constatar a miséria, a pobreza e a selvageria, porque se deus existisse ele seria um otário irresponsável, mas ele não existe e a culpa é nossa, principalmente sua e dos seus iguais, como Ele. Ainda assim zilhões de teólogos dissertaram sobre as supostas faculdades de uma possível deidade. Não chegaram à conclusa alguma. E O Mártir da Lucidez Gilles Deleuze me diz que deus é uma Lagosta. O que diria Ele sobre isso? E se eu interpretar que deus é uma pizza de brócolis ou uma serra elétrica, posso? A náusea existencialista de Sartre era só o aperitivo. Deve haver algo de muito errado num mundo em que os próprios intelectuais são responsáveis por provocar o caos, a fraude e o desentendimento, quando deveriam fazer exatamente o contrário. Posso enfiar essa Lagosta no seu buraco negro? O sujeito pós moderno se equilibra entre a incerteza e a incerteza, e sempre cai. Ele abre o porta-luvas e dá de cara com o escapamento. É triste que também você tenha se corrompido. Éramos amigos, mas agora você é mais amigo Dele,


Isso não é verdade e nem é muito adulto.


E o que te lembra a palavra adulto, senão adulteração e adultério? Estou soando infantil, achincalhando e conspurcando Os Ilustres Beneméritos do Pós Moderno? Ou estou apenas me agarrando com sofreguidão ao último resquício de sanidade nesse mundo onde as pessoas são seduzidas pela mentira, persuadidas pelos falsos profetas, tentadas pelos amorais aproveitadores da dignidade humana? Vamos construir um silogismo deleuziano? “O filme do Tarantino é pós moderno”, “deus é uma Lagosta”, logo “ostrogodos e visigodos invadiram o império romano.” Digo isso por que você sabe que havia uma unidade e um motivo pra tudo quando existiam os Zigurates da Babilônia, a banda que nunca aconteceu. Fomos um micro banda com micro músicas e um único disco lançado. Antes de eu virar historiador, você advogado e o André cineasta, lembra como eu sempre falava sobre o conceito de micro músicas? Isso sim é pós moderno, mas autêntico, intuído, imaginado. Gravamos um único disco, desaparecemos, mas ainda existimos. Fizemos. Construímos. Inventamos frases musicais e linhas de baixo que são deliciosas. Sempre achei, por exemplo, um mero capricho seu interesse por Stockhausem e música atonal. É Deleuze pros ouvidos. Você achava lindo falar que era influenciado por um compositor russo, mas fazia um pop no limite entre o experimental e o convencional. Como o André, que certa época se apaixonou por Tarkowsky. Vi Solaris com ele e juro que o vi bocejando. Quando acabou o filme, ele disse baixinho: “graças a deus acabou essa porra.” A mesma coisa com filmes do Lars Von Trier. Essa veneração ridícula por uma arte “cerebral” e “difícil.” Essa fascinação bajulatória por doentes mentais europeus que acham lindo uma cena com vinte minutos de estupro. Você acha lindo se sentir agredido? Acha o fino da bossa ir numa instalação de arte e ver mulheres enfiarem crucifixos na xoxota? Se um dia sua mulher chega em casa contado que foi estuprada você diz “analisemos isso à luz dos teóricos pós modernos”? E se acha vanguarda? Pegue o Arco Íris da Gravidade, por exemplo.


Quer escolher a sua metade?


O livro é uma grande brincadeira, que eu mesmo não acho tão engraçada. Um certo fulano desconfia que sua rotina sexual está de alguma forma inexplicável relacionada aos bombardeios no fim da Segunda Guerra Mundial. Pynchon não escolheu esse momento por acaso. É o Marco Zero da Era Atômica, Cibernética e Espacial. Americanos e soviéticos retalham o que sobrou da Alemanha nazista, cooptam cientistas, aliciam dissidentes, subornam espiões e agentes duplos. As multinacionais e o Partido Comunista tomam de assalto o parque industrial alemão – os russos verão seu estado fatiado nos anos noventa, quando os oligarcas e os mafiosos ultra capitalistas vão saquear a carniça do Partidão... espero não estar te entediando com essas pequenas irrupções políticas e históricas... e esse fulano fica paranóico com a coisa, não sabe se o que sente e intui é uma coincidência, se há alguma sinistra corporação por trás de tudo monitorando suas ereções e explosões de endorfina e testosterona. E é imperativo que evoque o pioneiro dessa caralhada, o Estúpido e Senil Cavaleiro Dom Quixote e Suas Aventuras e Enrascadas entre os Quadrúpedes da Península Ibérica. Dom Quixote é celebrado por dez entre dez literatos como o romance fundador da Modernidade por apresentar um anti-herói platônico, mas esse ilustre senhor é no fundo um retardado. Dom Quixote é uma piada de joazinho contada em quinhentas páginas. O sujeito se acha um cavaleiro medieval quando é no fundo um banana e idealiza uma mulher que não existe. Mas isso não é uma interpretação passageira, um pensamento torto de alguém de ressaca, uma impressão momentânea, não... principalmente, não é uma variável... Dom Quixote enterra toda e qualquer possibilidade de ambivalência, é o Adão redimido do conhecimento e do pecado... ele é apenas e tão somente um idiota retardado, um louco... e os loucos são violentos e cagam nas calças, embora você ache que eles escrevam poesia.... a estupidez moderna atualizada de pós moderna... entre um imbecil de fato e um outro que talvez tenha sido imbecilizado reconheço que há uma gradação temática, mas... você tem visto a Luciana?


Luciana? Não. Por que?


Há algo a respeito dela que não tenha me contado?


Dela? Por que haveria?


Rolou algo entre vocês?


Bem... não na verdade... mas o que


Vamos lançar uma hipótese, um simples exercício de pensamento: suponhamos que um dia uma surge um site bem bacana e bem feitinho na internet com o seguinte título: Todos os Podres de Fulano de Castro.com. Lá estão detalhadas, minuciosamente, todas as vezes em que você pagou um mico. Todas as suas brochadas. Depoimentos estarrecedores de mulheres falando o quanto o seu pau é pequeno e quão medíocre você é na cama. Há também comentários de pessoas anônimas falando sobre os seus problemas de sudorese e halitose, sobre como é desagradável ficar ao seu lado num dia quente, o quanto você é fétido e azedo. Há também provas de que certos trechos da sua tese de mestrado são plágios escancarados. O infeliz responsável pelo troço fez realmente um trabalho bem feito: foi atrás de toda a bibliografia citada e transcreveu partes quase idênticas, nas quais você troca por exemplo “o advento da sociologia contemporânea” por “a eclosão da sociologia a partir de um viés contemporâneo”. Agora, raciocine comigo: eu te conheço há um milhão anos. Conheço tudo a seu respeito: família, ex namoradas, colegas de trabalho, conheço todo mundo. Se você morresse hoje, quem seria o primeiro na lista para se tornar o seu biógrafo? Até aí, tudo bem. Agora, responda com sinceridade, mas pense bem antes: pense no valor da nossa amizade. Só por que eu te conheço há trocentos anos, só por que sou um excelente observador e compilador de fraudes intelectuais, só por que você supostamente comeu a Sara Vaz enquanto eu tomava banho de rio, só por isso você por um instante que seja julgaria possível que fosse eu o responsável por criar e alimentar o conteúdo dessa página?


Uhnrffff...


É bom que fique claro uma coisa. Por um instante, pode passar pela sua cabeça o seguinte raciocínio: “essa porra desse Frederico não é meu amigo, nunca foi. Esse cara é na verdade um psicopata perigoso. Sim, lembro exatamente o dia em que ele chutou um mendigo que dormia na rua” lembra? “e percebo agora que sempre me enojou o fascínio que ele tem por livros que tratam de torturas, de envenenamento e esquartejamento de crianças... durante todo esse tempo fui amigo de um psicopata despido de quaisquer valores morais, alguém sequioso de sangue e podridão... e essa mania que ele tem de falar como uma metralhadora, sempre distorcendo argumentos, fazendo ilações maldosas, afim de provocar confusão... por anos achei que era o jeito dele, mas não, a coisa é muito pior... eu no auge da minha inocência achei que ele era meu amigo, mas não.... eu não sou um ser humano capaz de argumentar e de criar réplicas e tréplicas construtivas, não... na verdade eu enquanto cidadão e indivíduo não existo, sou apenas o anexo de uma grande orelha que nem é uma orelha... é só um penico no qual ele despeja vaidade e escatologia...ele fala sem parar, e não se importa e nunca deu a mínima pra minha opinião a respeito das coisas. Me subornou há muitos anos porque precisava de um baterista, e um bom baterista não é fácil de achar... sou uma coisa descartável e desprezível e não ficaria nada surpreso se ele me agredisse ou hostilizasse publicamente e fizesse algo horrendo e hediondo como essa tal página na internet... não... a volúpia destrutiva dele não tem limites... ele mataria a própria mãe e fritaria suculentos bifes com a carne da velha... nunca o vi demonstrando carinho ou afeto por ninguém, por ninguém... ele apenas usa as pessoas e quando elas já de bom grado forneceram o seu quinhão de bondade as joga fora e pisa em cima, como se todo mundo fosse cachorro... sim... quantas vezes já o vi chutando cachorros e gatos pela rua? Quantas vezes o vi exultando ao saber que houve um desastre, um terremoto, que há milhares de desabrigados... e eu durante todo esse tempo achando que fosse uma espécie de extravagância intelectual essa misantropia cuidadosamente esculpida... não... que fosse um capricho e uma constatação curiosa da nossa irracionalidade... mas não, é muito pior... percebo agora que ele é um louco de verdade...” tolero que você pense essas cretinices ao meu respeito, pois elas não são completamente implausíveis, mas você estaria cometendo um erro fundamental....


Não vai comer?


Principalmente estaria me subestimando, porque sou muito melhor que isso. No fundo minha bondade é quase um fardo, mas tenho que carregá-la, tem algo a ver com honra, justiça e equidade, honestamente eu não saberia explicar direito, mas sou bom e reto por natureza. Não faço uma crítica que não seja construtiva, não há um imposto que eu sonegue nem ninguém que por mim tenha em algum momento sido lesado, pode procurar à vontade, não existe. Pra todos os efeitos eu falo que sou ateu, mas há algo no hinduísmo que eu tenho certeza que é verdade, que é o karma, a lei do vai-e-volta, o cancro e o encosto espiritual. Finjo que não acredito, mas tenho um medo do caralho de história de fantasma, de gente morta cujo espírito fica atrelado ao corpo. Quando eu morrer quero sair voando como um passarinho. Acho o perdão a mais a coisa mais nobre do ser humano. Acho mesmo. Quero sair do meu corpo e ir serelepe escorregar nos anéis de saturno, virar uma descarga de luz no buraco negro da criação, me liquefazer na terra... por favor, quero que me prometa que vou ser cremado, que se eu morrer antes você vai jogar minhas cinzas no meio do oceano ou da floresta amazônica num ritual bem ecumênico, charmoso e discreto, com altíssimo grau de compreensão e desapego... seria o fim de um ser humano tão único...


Come.


Lembra quando comecei a colecionar livros sobre tortura? Devo ser o maior especialista brasileiro em tortura, em métodos de aniquilamento do ser humano... há tantas e tão variadas formas de provocar sofrimento. A mutilação genital. Tudo o que se pode fazer com os olhos. A garganta. Graus de asfixia. Métodos de esfarelamento dos ossos. A falência de certos órgãos. Queria ver o Deleuze falar que um corpo não tem órgãos se eu tivesse um bisturi, um maçarico e o fígado dele. Aquele espacinho entre a carne e as unhas. É importante que eu tenha esse conhecimento, que saiba que posso fazer essas coisas, mas que ao fim e ao cabo, no frigir dos ovos, não vou fazê-las porque não é certo, só isso. Simples desse jeito. Já Ele não. Ele julga: é pós moderno. E acabou-se o papo


Porra, de novo!


Ele fez uma crítica, certo? Bem ao estilo dele. Bem, todo mundo tem o direito de ser crítico de cinema.


Exatamente!


Então eu também quero. Você viu o filme, não é? Pra começar, tem longos diálogos. Pessoas hiperativas e desequilibradas como Ele não têm muita paciência pra isso. Não estou defendendo a profundidade da coisa. Tampouco servindo de advogado do Tarantino. O coitado só representa uma legião de cinéfilos que cresceu vendo porcaria na televisão. Pessoas como eu, que compreendem o valor estético da violência, mas não saem por aí dando tapa na orelha dos outros, talvez tirem do filme uma ou duas reflexões sobre o animal humano ou sobre a indústria cultural norte americana. Não Ele: Ele só decreta que é pós moderno.


Ta uma delícia.


Sabia que é desagradável ver você comendo? Sabia disso? Essa boca mole indo e voltando, todo esse queijo esticando e derretendo e se misturando com a sua saliva... qual a diferença entre ver você comendo e cagando na minha frente? Não tem vergonha? Não se acha exposto? Algum historiador já disse que a civilização se fez em cima de uma mesa. Enquanto éramos hominídeos que levavam a carniça pra caverna, tudo estava perfeito. Mas aí fez-se a primeira refeição da história e começou O Primado e a Vigência Irrevogável da Hipocrisia. Mas você não precisa tentar provar pra mim que é inteligente e interessante, se for burro e desagradável. Quer um exemplo? É o meu problema, só sei falar por exemplos. Abomino os conceitos abstratos.


Não sei o que você ganha me agredindo desse jeito.


Você lendo o livro do Deleuze e ele comentando o filme do Tarantino. É o Bacanal do Desentendimento. Não estou te chamando exatamente de burro, longe disso. Mas às vezes você é meio lento. Fica meio que viajando. Falando coisas que se pesadas com um mínimo grau de discernimento... digo... politicamente falando...até o seu lulismo ingênuo...


E você também não é lulista?


Sou lulista pragmático e você lulista iludido...


Nossos votos valem a mesma coisa, não é?


Mas nossos espíritos estão em sintonias diferentes, em outro nível de vibração. Sabe em que pé estamos? Quer saber como Alan Kardec analisaria o desempenho dos nossos espíritos nesse campeonato de pontos corridos em busca da Sabedoria? Quer um instantâneo da coisa? Eu estou fluindo com o rio. O sol esquenta lá em cima. Há passarinhos cantando. O verde da natureza. Quase posso sentir o geladinho da água, os peixinhos brincando entre as minhas pernas. Eu debaixo da cachoeira lavando e torcendo e desinfetando minha alma. Livre. E você, onde anda? Você tá no mato Comendo a Mulher do Seu Amigo, a consciência pesada e emporcalhada, o sentimento de culpa te esmagando, o câncer da traição te corroendo por dentro... você somatizou essa porra e demorou tanto tempo pra me contar que o estrago já ta feito, e é por culpa exclusivamente sua. Só contou agora porque a coisa tinha se tornado insuportável. Quantos pesadelos deve ter tido com essa merda? Quantas vezes me abraçou ou apertou minha mão pensando “eu finjo ser amigo dele, mas sou um crápula.”? Quantas? Agora você é mais amigo Dele porque com Ele não tem que carregar esse fardo,


Sou amigo de quem eu quiser.


Por que é mais fácil! Ele fala que é pos moderno e você acredita! Vocês falam de modo raso sobre coisas profundas e como os dois estão de acordo porque fizeram de antemão o pacto da mediocridade ninguém se sente lesado ou agredido. Quero ver você falar com propriedade sobre os encargos legais que cabem a um mutuário. Me explica como se eu tivesse cinco anos de idade sobre o que cargas dágua falava Witgeinstein. Me diz porque e em qual conjuntura ocorre a deflação. Me dá uma aulinha de física quântica? Sobre a Teoria das Super Cordas ou sobre o Princípio da Incerteza de Heisemberg? Adoro esse assunto. E, cara, os satélites! Me conta tudo sobre eles! Ou então vamos dar um passeio pela tabela periódica? Ou me conta sobre perfuração de petróleo ou as propriedades do silício?


Ele faz origamis.


Hã?


Tá lá sentado e amassa um papelzinho e faz um periquito, uma pirâmide, uma gaivota, um foguete, um monte de coisas....


Ele faz origamis. É muito engraçado isso: como se uma operação completamente banal, sim, completamente banal... como se... ele faz origamis... há uns e outros que ganham zilhões de dólares pra bater embaixadinhas como focas... a celebridade do momento é uma mulher que esmagou uma caixa de cerveja com os peitos gigantescos. A Campeã do Salto Triplo voou mais meio milímetro! Ele faz origamis! Agora é super fashion pendurá-los nos cabelos! Por que você e Ele dedicam tanto tempo a coisas irrelevantes?


Por que não diz essas coisas pra Ele?


Ora!


Vou ligar pra Ele.


Como?


Ó. Ta chamando. Alô. Olá, meu caro, como vai? Beleza? Tem um minutinho pra falar? Ótimo. Então, lembra daquele dia daquela festa quando Você tava conversando com o Fred sobre o filme do Tarantino e ali ele disse “mas o que é o pós moderno”? Lembra? Então. Parece que ele queria te explicar umas coisas sobre o que é exatamente na opinião dele uma coisa pós moderna e também parece que falar sobre o Dom Quixote, O Arco Íris da Gravidade e o Rizoma do Deleuze. É, ele começou com um papo sobre honestidade e probidade intelec... probidade, é, ele falou isso.... papo de doidão, Você conhece ele... pois então, eu imaginei que Você tinha um tempinho mas não esse tempo todo... claro, depois ele te explica direitinho. Ah, Você tá sabendo de sábado na casa da Paulinha? Ótimo, a gente se vê lá então. Abraço.


Você...não acredito que fez isso...to em estado de choque, to paralisado, caralho, como você foi baixo e no limite mais profundo da vileza e da canalhice e da filha da putagem... nunca pensei, nunca imaginei, nunca... você comeu minha mulher e me humilhou na frente Dele e agora Ele vai imaginar que perco o meu precioso tempo sobre a terra pensando Nele e em qual a diferença entre o que Ele entende ou deixa de entender a respeito do pós moderno que é de resto um assunto por si estúpido e indiferente... como se me importasse com o que quer que venha Dele...


E não é verdade?


Não! Não compreende? Eu tava apenas inocentemente ilustrando um assunto, pintando um quadro, falando merda, é isso... vou... vou levar a minha da pizza pra comer em casa. Posso? Por favor, quanto devo? Toma. Sabe? Vou... jantar em casa, vendo televisão. É um momento de rara beleza e aconchego. Eu, a comida e a televisão. É tão civilizado... eu... eu não saberia exatamente traduzir em palavras mas... estou francamente chocado e me sentindo humilhado e estupefato diante da sua monstruosidade a amoralidade, estupefato.... estupidificado.... eu... francamente prefiro comer em casa, eu.... eu... bem, até logo...


Putzgrila, que cara pós moderno.




















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