quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

#tergivesandodenovo

#DDD
#tergivesandodenovo

É como se eu tivesse acabado de vir ao mundo. Como se tivesse nascido cinco minutos atrás. Ainda não vi, não peguei, não sei como funciona. Até o ar: respirar também é uma coisa nova. Meu coração batendo, eu posso sentir, que estranho. Ele bate rápido. Mas talvez, se eu tentar lembrar. É por causa da viagem, do fuso horário. Viu? Viu como estou lembrando? O lance é não desesperar, como daquela vez. A gente sempre lembra das coisas desagradáveis. Eu tava dormindo, como agora, e acordei de repente do mesmo jeito. Fui mexer o meu corpo e: nada. Nem um dedo. O rosto paralisado. Eu inteiro parado. Claro que o primeiro pensamento que veio foi: morri. Pronto, é isso. Não estou vivo. Mas então é isso a eternidade? Uma consciência imóvel? É que vou me precipitando, pensando coisas antes da hora, mentalizando abismos intransponíveis e fatalidades assustadoras. Quanto tempo deve ter durado o desespero? Eu diria que trinta segundos, mas que pareceram quarenta e nove séculos. Só depois eu vim saber que esse tipo de experiência é comum, e que o lance é tentar manter a calma, se tiver um espírito esclarecido, se não for muito apegado ao seu corpo. Não é o meu caso.

Naquele dia eu acordei e também não sabia onde estava. Tava uma escuridão do caralho, escrota, completa. Puta que pariu. Eu tava desorientado. Era um zumbi sonâmbulo. Ergui os braços e fui tateando até achar a parede. Pra que lado, porra? Vou me esgueirando, suando frio, com taquicardia, e meto a cabeça na quina do móvel. Abre um rasgo. A testa lateja. Caralho, tá saindo sangue, que merda, que merda. Vou chorar, desse jeito. Vou sucumbir e cair no chão, morto. Não desejo pra ninguém essa porra. Porque eu também tinha acabado de vir ao mundo. É como se eu tivesse dormido e uma chuva ácida corroído toda a porra do cérebro. É um curto circuito. Tenho que confessar que tenho medo. Sou um adulto racional e equilibrado, mas sinto medo, é uma merda isso. Se eu tentar lembrar direito. Deve ter acontecido outras vezes. Na verdade um monte de vezes. Caio de cara nessa porra, que é um pouco de sonho, um pouco de morte, um pouco de desespero. Não queria isso. Era pra eu ser forte. Mas sou fraco. Tento não pensar nessas coisas, mas penso. Deve ser por causa do fuso horário.

É isso, eu tava viajando. Já é um começo. Onde? Em Xanadu, claro. Foram quantos dias? As férias inteiras! Mas quanto? Duas semanas? Três? Um mês e meio? Talvez eu tivesse morado lá dois, quem três anos. Passei tanto tempo. É que rolou uma oportunidade de emprego. Não foi? E uns flertes, não foi também? Uns flertes bem bacanas. Comece se lembrado das mulheres, que é fácil, e o pensamento vai embora. Foi uma atriz e uma... cozinheira? Me corrija se eu estiver errado, mas... tenho certeza que era uma cozinheira. Peraí, uma chefe de cozinha. De um restaurante gran fino. Vai lembrando as coisas boas da boa vida. A parte ruim a gente lembra outra hora. A história do atropelamento, etc. Não é exatamente fácil lembrar de uma história nessa circunstância. Mas vai cara, é o único jeito. Vai ficar deitado parado pensando: morri. Vai? Porra, tenta colaborar comigo. Não tem outro jeito. Quer opções? Ou ainda tá de férias em Xanadu. Ou voltou pra Xangrilá e tá na sua cama, dormindo pesadamente depois da viagem e do pileque no avião. Houve isso? Ou tá sonhando, um tipo de sonho em que a gente não sente o corpo. Não acontece um monte de coisa estranha no sonho? Só me conta: foi uma chefe de cozinha. Era um restaurante italiano da primeira avenida, não era? E o seu jantar? Você acreditaria se eu dissesse que foi a melhor refeição da minha vida? Escuta essa. O restaurante tava vazio, eu entrei, sentei no balcaozão de madeira e dei boa noite pra menina do outro lado. Um boa noite bem amigável, bem no estilo quero-te-comer-agora-ou-quando-for-possível. Perguntei se a Mitra estava, e ela disse: claro, vou chamar. Dois minutos depois, ela veio. De avental e touqinha. Da primeira vez que a beijei a gente tava sentado, bêbados, num bar. Depois de muito goró e conversa fora, rolou um beijo. Três, quatro, dez, cinqüenta, todos molhados, eu de pau duro, ela se esfregando, deixando eu meter a mão na xavana. Agora, vendo ela sóbrio, percebo que é bem mais gorda do que eu lembrava. Não deixa de ser charmosa e ter um rostinho agradável. Eu como fácil. Ela me mostra o cardápio. Escolho um escalope florentino com maçãs carameladas, aspargos e camarões flambados. Escolho também uma cerveja importada, que elas recomendam. É deliciosa. Sabe, passei duas horas procurando esse restaurante, e tava frio lá fora. É o prédio 95, mas fui dar na rua 95. Não sei já mencionei que sou meio desorientado. Quando subo do metrô por exemplo tenho uma certa dificuldade em saber pra que lado é o norte, o sul, o direito, o esquerdo. Fico zanzando debaixo da terra e na superfície parece que trocaram tudo de lado. Meio freudiano isso. Aí achei e aqui tá tão quentinho, e vocês são tão gente finas, e a comida é tão deliciosa. Me pego tergivesando sobre literatura e indicando escritores e músicos brasileiros. Na hora de pagar, elas dizem que é por conta. Peço outra cerveja e insisto. Posso ao menos pagar o táxi? A gente toma uma saideira na Patagônia. Ela diz que tá de ressaca. Que acordou semi morta hoje. Que precisa dormir. Tudo bem, eu fico sozinho. Mas me dá seu email? Tem uma coisa que você precisa saber sobre mim: adoro ficar sozinho. Sou solitário por natureza, pra eu ser feliz me basta uma cadeira e um livro. Mas tem esses momentos, eles acontecem comigo. Olha, realmente to caindo de sono. Nem uma saideira? Ta bom. Rola um abraço. Beijo. Beijo de novo no rosto, na orelha, beijo toda a cara dela. Eu não queria dormir agora.


Me conta do pileque. Você tava no aeroporto de guarulhos, vindo de Lima, fazendo a última escala pra Xangrilá. Mais de oito horas de vôo, cinco de aeroporto, mais quatro de vôo, mais duas horas nessa porra lotada desse aeroporto de guarulhos, e o avião ainda tá atrasado. Porras fudidas, essas escalas. E ainda to bebendo desde que embarquei. No vôo pra Malásia, foram sete uísques, até a aeromoça dizer que lo bar está cerrado. No Smoking bar de Lima, mais quatro cervejas, numa manha idílica de sexta (?) feira. Na verdade to bebendo desde o dia primeiro de janeiro de 2010. Aliás, antes disso. Entrei na segunda década do século mamando todas. E olha que é quase carnaval de novo. No carnaval do ano passado eu –

Aí entro no bar do aeroporto de dou de cara com quem? Sim, acredite, com o Minotauro tomando uma tulipa de chope devassa escura. Foi uma surpresa e tanto. Tava esperando exatamente o mesmo vôo que eu. Tomo mais um uísque e um chope. Quase que a gente perde o vôo. Que, incrivelmente, tá quase vazio. É ótimo. Maravilhoso. O aeromoço é gente fina, e trás uma lata de cerveja atrás da outra. Uma coisa que lembro que o Minotauro disse foi isso: à dez quilômetros de altura: “Eu sempre tive essa tara, é uma coisa minha, e a gente tava namorando a o que? três meses, e um dia eu disse pra ela: sabe um feitiche que eu tenho? Que você se vestisse de puta e ficasse ali na quinze, e eu passasse de carro e te pegasse e te comesse como se tudo tivesse acontecendo, tipo entrando nos personagens, topa? E ela: beleza. Aí ela chegou lá umas seis da tarde e ficou falando putaria com as putas, de sainha de dez centímetros, e eu só passei dez da noite. Será que tinha feito um programa rapidinho? Eu não ia achar ruim. Depois disso já vi ela dando pra caras na minha frente várias vezes, de vários jeitos, mas nesse dia, por ser a primeira vez, eu tava muito excitado, porque gosto de ficar olhando, e fiquei bicando de longe e passei e ela subiu e falou “é cem reais o programa completo” e eu “da o cu e chupa a rola?” e ela “completo” e eu peguei e comi e no outro dia ela veio me devolver o dinheiro e eu disse “nada disso, esse dinheiro é seu, ora essa, se não quiser joga fora.” Não acredito que ele disse isso. Como assim, gosta de ficar olhando?



“Primeiro: eu também fico carente. Sou um cara sensível. Você sabe disso. Nossa relação é legal. Massa. Não sinto ciúme, mas também não gosto de ficar sozinho. Aí fim de semana volta e meia ela sai pelo Gama, pelo Núcleo Bandeirante, da pra esse e aquele outro carinha, tudo bem, pode dar, mas me leva junto, eu fico sozinho, porra! Não gosto de sair e beber! Quero ficar aqui no meu apartamento – com você – mas você não quer ficar comigo, e isso me deixa puto, não vem me dar bom dia como se tivesse feliz e contente, porque to puto, sozinho e deprimido.” De fato ele raramente bebe, por isso tava tão emocionado. “Cara, eu amo ela. Dou liberdade pra ela -

Peraí. Não to entendendo uma coisa. Pelo que me lembro, isso foi na ida. Ou – agora to aqui dormindo pelado. Primeiro, por que cargas dágua eu to pelado, se durmo num lugar cheio de gente? É deselegante, porra. Em casa sim, no meu quarto, eu durmo pelado, mas aqui? De favor na casa dos outros? Sabe porque tenho certeza que to em Xanadu? Por que ta frio lá fora. Hoje, pela primeira vez, vi neve. Tava ventando forte, e uns pedaços grandes de neve começaram a cair na minha cara. Achei eles coloridos, meio azulados, eletrificados. Tá sentindo esse bem estar? Essa coisa boa?


Ah tá, um pedaço do ácido lisérgico. Tergivesando de novo: “Todo tipo de arte me fascina, música, literatura, arte gráfica, design, o caralho, e depois que eu descobri o cinema – que é uma janela – e a fotografia. Mas no fundo são letras, são símbolos, caracteres –










Eu tava imaginando uma cena, olha:

Uma bela casa no Lago Norte. O maridão chega em casa depois de um dia estressante no escritório. Sua linda e fiel esposa espera-o ao sopé da escada (sic), toda limpinha e cheirosa. Dão uma bitoca.

Esposa – Como foi o trabalho?

Bah

Ta cansado?

To.

Esquentei sua jantinha. Escalopinho e carne seca. Tem cerveja gelada no freezer, do jeito que você gosta.

Ta.

Vai tomar banho primeiro?

Vou comer, to com fome.

Ta bom. Senta ai que eu te sirvo. Olha só que delícia. Amorzinho, posso te pedir uma coisa?

Já to imaginando.

Você sabe que eu te amo tanto, não sabe? Que é o melhor marido do mundo? Que é o amor da minha vida. Você não sabe disso? Que eu te amo muito muito muito pra sempre infinito?

(arrotando) Blrrrrppppp

Eu não faço tudo que o meu amorzinho pede? Então, você podia me fazer aquilozinho... vai...

Porra, agora?

É, vai? Aqui, ó. Vai?

Bah! Toma, sua puta velha!

Dá-lhe uma murranca na cara. A esposa cai no chão gemendo de prazer.

Hun...que delícia... olha, ta sangrando....



Eu gostaria de interromper, posso? Não. Sério. Que parada desagradável.

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